Raquel Naveira

Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.       

Coluna semanal de Raquel Naveira
Nº 32, 02/07/2015

JUDAS

             A traição vem quando não esperamos, através de quem nunca desconfiamos. Judas é o nome ligado à traição em forma de beijo. Foi assim que Judas identificou Jesus aos soldados que vieram prendê-lo: com um beijo. Judas, o devoto mais querido. A sensação de Jesus terá sido a de surpresa como diante de um fogo que cai do céu e consome tudo de repente? De um furacão no deserto que arrasta a casa até os fundamentos? De um raio, eclipse, trovão, redemoinho? Por certo naquele instante do golpe as estrelas da madrugada ficaram escuras. A missão de Jesus pareceu-lhe um barco de junco no mar salgado. Mas Jesus apenas disse: “– Amigo, a que vieste? Com um beijo me entregas?”

             Esse gesto foi magistralmente descrito por Amós Oz, o escritor nascido em Jerusalém, o intelectual israelense mais renomado de nossos dias. Que romance intenso e necessário é o seu “Judas”. O livro conta a história do estudante Shumuel Asch. Em 1959, o mundo do personagem desmoronou: a namorada o deixou, seus pais faliram e ele foi obrigado a abandonar os estudos na universidade e interromper sua pesquisa- um tratado sobre Jesus sob a ótica dos judeus. Shumuel é absorvido pelo segredo que envolve a amaldiçoada figura de Judas Iscariotes, a personificação da traição. Romance cheio de lirismo, numa paisagem de inverno, onde o protagonista vive um amor doloroso e impossível. Amós Oz se questiona sobre aqueles que foram estigmatizados como traidores, como o próprio Judas. Há inteligência e paixão em seu olhar sobre a tragédia palestina, sobre a esterilidade do ódio que se alastra no desespero do povo árabe.

             Shumuel anota em seu caderno pensamentos polêmicos como estes: “Judas Iscariotes é o fundador da religião cristã.” “Judas é, pois, o inventor, o organizador, o diretor e o produtor da cena da crucificação.” “Judas, cujos olhos horrorizados viam o sentido e o objetivo de sua vida se esfacelar, Judas, que compreendeu que com suas próprias mãos tinha causado a morte do homem que amava e admirava, foi embora de lá e se enforcou. Assim morreu o primeiro cristão. O último cristão. O único cristão.”

             É uma visão acertada a de Amós Oz sobre o remorso de Judas. Não houve arrependimento. Trinta siclos de prata foi o preço vil embolsado por Judas pela traição, naquele campo de sangue.

             Como o mais belo, o mais culto, o mais chegado ao nosso seio se rebela? Discorda? Não ouve os conselhos? Segue outro caminho? Inventa guerras contra nós? Assim, perplexo, deve ter se sentido Júlio César, o imperador romano, conquistador das terras da Gália, amante da rainha egípcia Cleópatra, quando foi vítima de uma conspiração de senadores para tirá-lo do cargo e viu que, entre eles, estava seu filho adotivo, Brutus. No templo da deusa Vênus, na hora da morte, atingido por punhaladas, reconhecendo o filho no meio dos algozes, proferiu a frase: “– Até tu, Brutus, filho meu?”

             Há um outro homem que encarnou o papel de Judas em nossa história: o rico fazendeiro, o contratador Joaquim Silvério dos Reis, o delator dos inconfidentes mineiros. Dizem que devia altos impostos à Coroa Portuguesa e queria assim se ver livre das contas. Delação premiada com recompensa em ouro, cargo público de tesoureiro, mansão, pensão de aposentadoria, título de fidalgo, fardão de gala e hábito da Ordem de Cristo. Viveu desde então cercado de inimigos, de dúvidas, de suspeitas, de aflição, de medo e desconfiança, pois nada se ganha com o mal da traição.

             Cecília Meireles, a poetisa carioca que colocou em versos esse episódio em seu “Romanceiro da Inconfidência”, compara Joaquim Silvério a Judas dizendo: “Melhor negócio que Judas fazes tu, Joaquim Silvério.” Explica então que Judas traiu Jesus Cristo, enquanto Joaquim Silvério traiu um simples alferes. Judas traiu por trinta dinheiros. Silvério pediu muitas outras coisas: honras, glórias, privilégios. Silvério fez melhor negócio que Judas. Judas teve remorso. Silvério não. Judas se enforcou na figueira. Silvério envelheceu orgulhoso, cheio de mistérios. E conclui afirmando que nenhum destino se perde: nem o dos sonhos dos homens, nem a surda força dos vermes. Os traidores são vermes.

             A traição vem quando não esperamos, através de quem nunca desconfiamos. Há muitos judas nos traindo nos relacionamentos afetivos, nos círculos de amizade e na política. Por vezes, com setas cravadas no espírito, fracos em meio à opressão e à angústia, perguntamo-nos com tristeza: – Por quê eles se tornaram nossos adversários? Justamente eles, os que mais amávamos?

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