Raquel Naveira

Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.    

Coluna semanal de Raquel Naveira
Nº 55, 12/4/2016

MÃE ETERNA

             Surpreendo-me com o novo livro da escritora e psicanalista paulista, Betty Milan, intitulado Mãe Eterna. Nele, a filha-narradora escreve sobre seu drama com a mãe de 98 anos, quase cega, quase surda, que se locomove mal e se alimenta como um passarinho. Escreve para processar e suportar a perda da mãe antes mesmo de sua morte. Rememora o passado de uma mulher combativa, que, viúva precocemente, assumiu com mãos de ferro as rédeas da família. Uma mulher cheia de personalidade, humor e independência, presa agora às contingências de uma penosa velhice. Refletindo sobre a condição da mãe, a filha se questiona sobre a conduta do médico que procura vencer a morte a todo custo e como humanizar o fim da vida. É um relato perpassado de espanto, ternura e realidade. Admiro como Betty é capaz de desnudar sua alma com tanta coragem, como se tivesse uma faca para penetrar entre os ossos e a medula.

             Conheci Dona Rosa no lançamento do documentário “Dona Rosa”, dirigido por seu neto, o cineasta Mathias Mangin, filho de Betty, e por Lucas Mandacaru, que traça o perfil dessa mulher esperta e prática, que viu na manutenção dos bens fincados na selva da cidade, um objetivo de sobrevivência. Observei seu olhar arguto, quase irônico, de quem guarda a sete chaves o segredo de uma longevidade incompreensível até mesmo para ela. Personagem incrível essa matriarca-rainha.

            Mãe é mesmo um papel sagrado. Em francês, as palavras “mer” (mar) e “mère” (mãe) são muito parecidas. Mãe é mar, matriz, líquido amniótico em ondas no útero. Mãe é porta para o nascer, para o sair do ventre em busca de luz e para o morrer, o retornar à terra. Mãe é abrigo, segurança, mas também pode ser opressão, castração. Mãe que domina, paralisa e devora.

            Sonho muitas vezes com uma mãe ursa, violenta, boca que estraçalha carnes e estrelas. Com uma loba que amamenta com peitos de fel. Com uma orquídea que suga e sufoca o tronco de que se alimenta até a raiz. Outras vezes, sinto-me uma vaca fluindo leite, nutrindo de meu sangue, de meu couro cor de lua bezerros puros. A verdade é que, em vários planos, ora sou filha, ora mãe. Confundo-me em cenas fortes que formam o filme de minha existência, meu princípio feminino

            Jesus ordenou que orássemos ao Pai. Pai é vínculo espiritual, de confiança. A mulher declara quem é o pai da criança. O pai acredita nessa palavra. Mãe é ventre, entranhas, templo, comunidade onde se vive a graça e se sofrem traumas. Entre os antigos romanos, a paternidade só se dava no momento em que a mulher colocava o filho aos pés do pai e ele, reconhecendo em seu íntimo o fato de ser pai, levantava a criança e lhe dava um nome: “ – Marco Túlio Cícero”. Se desprezasse a criança, o filho seria abandonado, expurgado, ficaria à margem daquela sociedade opulenta e cruel.

            Maria foi mãe coragem. Desafiou os costumes e as leis da natureza. Aceitou cumprir a vontade do Pai. Engravidou do Espírito, mesmo sendo noiva de um homem, mesmo correndo o risco de ser apedrejada. Abriu-se para a encarnação do Verbo.

            Betty e eu temos esse ponto em comum: a velhice de mães marcantes. A minha é uma espécie de Elizabeth Taylor. Cresci ouvindo dizer que tão linda quanto. Os olhos claros de fera. O mesmo destino de Liz. Infelizes nos amores, mimadas, enfermas no corpo e na alma. Gatas em teto de zinco quente. Cleópatras fundando reinos. Fêmeas transgressoras, mas, no fundo, conservadoras, sonhando com maridos e filhos, rejeitando a família despedaçada. Rostos perfeitos de esfinges, seios brancos, colos pesados de colares, colunas esfaceladas. Trágicas e dolorosas. Empurro minha mãe na cadeira de rodas pelo mundo. Meu fardo, minha devoção sobrenatural, minha filha às avessas. Ela é minha sina. Eu o sei e busco honrar.

            Identifico-me com aquela obra-prima de Bergman, o filme “Sonata de Outono”, com as atrizes Ingrid Bergman e Liv Ullmann, mãe e filha. Após ter sido uma mãe ausente por anos, Charlotte, famosa pianista, vai até a casa de sua filha Eva para lhe fazer uma visita. Estavam sem se ver há sete anos. A mãe encontra ali sua outra filha, Helena, que tem problemas mentais. Eva tirou Helena da instituição onde Charlotte a havia internado para cuidar dela. A tensão entre mãe e filha cresce até que elas colocam tudo em pratos limpos. Nessa conturbada relação, há impossibilidade de amar. (Lacan, com quem Betty Milan estudou na França, afirmou que “uma mãe pode ser uma devastação para uma filha”). Os semblantes das personagens se transformam, as máscaras caem, as chagas se expõem. Eva procura em vão um lugar no desejo dessa mãe que mantém as filhas à distância. A filha se petrifica. A decepção é enorme. Somente as cartas, o som das sonatas, as folhas alaranjadas de outono podem amenizar tamanho sofrimento.

            Cartas... Betty lê cartas de amor do pai à sua mãe. Relembra viagens que fizeram juntas a Paris, o pôr do sol à beira do Sena, o navio atravessando o oceano. Escreverei uma carta à Betty: “ – Querida, ma chérie, o seu livro colocou-me a seu lado, ao lado da sua e da minha mãe. Quando terminei de lê-lo, os meus olhos fitaram o mar da eternidade”.

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