Raquel Naveira

Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.       

Coluna semanal de Raquel Naveira
Nº 36, 29/07/2015

PANELA

                  A panela está fervendo. Abro a tampa. Vejo a efervescência provocada pela ebulição. Que operação mágica essa do fogo sobre o líquido. O caldo de carne e legumes está grosso e cheiroso. Nesta noite fria, logo dará vigor ao meu corpo e regeneração à minha alma.

                  Lembrei-me de um antigo conto infantil escrito pelos irmãos Grimm. Houve uma vez, uma moça pobre e bonita, que vivia só com a mãe. Chegou um dia em que nada tinham para comer. A moça foi à floresta e lá encontrou uma velha que lhe deu uma panelinha. Bastava dizer: “panelinha, faz mingau” e logo a panelinha preparava um mingau doce de farinha amarela, uma delícia. Bastava dizer, “chega, panelinha” e ela parava de fazer mingau. Desde então, mãe e filha ficaram livres da penúria. Um dia em que a moça teve de sair, a mãe disse: “faz mingau, panelinha”. A panelinha pôs-se a fazer mingau. A mãe queria mandar a panelinha parar, mas não falava a palavra certa. O mingau foi aumentando, aumentando, transbordou, encheu a casa, a casa da vizinha, a rua e tudo o mais, como se quisesse alimentar o mundo inteiro. A fantasia do alimento inesgotável, do maná caindo do céu. E o descontrole de nossa vontade.

                  Nas histórias também aparece sempre a bruxa na cozinha, local das transformações alquímicas, com seus caldeirões e poções. Impressionante aquela cena da peça teatral “Macbeth”, de Shakespeare, que conta o assassinato do rei da Escócia e suas consequências, quando Macbeth, o assassino, vai procurar as três bruxas, as três irmãs feiticeiras, misteriosas e sombrias. Ele as encontra numa gruta, a ferver num caldeirão uma beberagem feita de filés de serpente do pântano, olhos de salamandra, língua de cão, pelos de morcego, pé de sapo, perna de lagarto, asa de coruja e outras coisas nojentas. Mexem e remexem o encantamento poderoso. O caldo infernal ferve, o fogo queima, o caldeirão borbulha. Macbeth, já completamente tomado pelo Mal, exige que elas digam o que vai acontecer. As feiticeiras preveem o desastre, mas ele sai convencido de que está em segurança. Marcha, orgulhoso, para o seu fim. O fim trágico dos ambiciosos.

                  Cora Coralina, a poeta goiana, deu o testemunho de um estranho caso. Afirma num relato do seu livro “Poesia de Cordel”, que conheceu uma mulher pobre, de origem italiana, carregada de filhos, que morava num bairro rural. Era uma mulher de fé assentada na rocha. Um dia, quando não tinha nenhuma raiz de mandioca para a sopa, nem um ovo para misturar com farinha, ouviu uma voz que dizia: “ – Faz uma sopa de pedra”. Ela então pegou a panela, encheu de água, lavou uma pedra escura, colocou-a no centro, juntou uma colher de sal, avivou o fogo e tampou. De repente, o tom da fervura mudou, veio o aroma de comida gorda e quente. Quando ela abriu a panela, todos deram gritos de alegria, pois ali estava uma sopa estufada e suculenta. Comeram, fartaram-se e ainda sobrou. Depois daquele dia milagroso, a família prosperou com lavouras de milho, arroz e feijão. E se Cora Coralina acreditou, acredito eu.

                  As cidades são panelas fervendo. Enormes caldeiras. Há uma passagem bíblica sobre o anúncio do cerco de Jerusalém em que o profeta propõe uma parábola aos rebeldes dizendo-lhes que preparem a panela, derramem água dentro, juntem pedaços de coxas e espáduas, ossos escolhidos e fervam. A cidade sanguinária é assim como uma panela enferrujada. Cozinha até evaporar o caldo, esturricar os ossos, purificar a ferrugem. Trata-se de uma alusão aos crimes cometidos a torto e a direito, ao sangue vertido pelas esquinas, à violência aumentando nos lares, ao clamor por vingança e por justiça.

                  Subi no ponto mais alto da cidade de São Paulo, o Pico do Jaraguá, palco de guerras entre bandeirantes e índios. Lugar de exploração de ouro no passado. De lá, do topo, entre bicas d'água e silêncio, tive uma visão. A cidade imensa, os edifícios erguidos como palitos, esculturas de ossos, pareceu-me uma panela, um caldeirão transbordando desventuras. O povo, guiado por líderes incapazes e ideias perversas, soprava as chamas da devastação. Tudo era catástrofe e escuma. Opressão de uma situação complexa e caótica. De repente, percebi em alguns espaços a vegetação verde, a esperança fervendo por dentro e pelas bordas do abismo, vindo da tenacidade e da resistência, germinando no meio do cansaço. A lenha amontoada sob o caldeirão ardia, rolos de fumaça cinza se estendiam pelos ares assinalando novos caminhos na neblina.

                  Delirei. A panela está fervendo. Nesta noite fria, creio no poder das transmutações e num conforto divino em forma de sopa.

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