Raquel Naveira

Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.    

Coluna semanal de Raquel Naveira
Nº 56, 28/4/2016

HOTEL

            Voltamos a exercer nossa antiga atividade: administrar um hotel. O termo “hostellum” começou a ser utilizado para designar palacetes onde os reis e suas comitivas se hospedavam na época do Império Romano. As estradas pavimentadas da época e a relativa paz resultaram numa sociedade em que as pessoas viajavam bastante. Havia dois tipos de hospedarias: a estalagem, casas para os nobres e oficiais e o estábulo, grande cobertura para proteger os plebeus, o gado, os animais de montaria e de carga contra os rigores do inverno e os perigos da noite.

            Maria, grávida, e seu esposo, José, estavam nessa condição. Numa estrada romana, montados num jumento, buscando uma estalagem. Todas as portas se fecharam e ela deu à luz num estábulo forrado de feno, de estrume, de palha, perto de Belém. Ali havia uma manjedoura, um tabuleiro onde se colocava sal, forragem moída. Os cavalos, vacas e muares enfiavam os focinhos, resfolegavam, baixavam as pálpebras de seus olhos doces. Foi num lugar humilde assim que nasceu Jesus, o homem que era Deus. Imagino as figuras: Maria, tão mãe, tão santa, tão judia, envolvendo o filho em faixas de pano; José, tão resignado, fixando a face daquele menino que viera do céu; os pastores maravilhados diante do prodígio de uma criança que seria o Cristo. E tons de flauta, barulho de juncos se vergando ao vento e à harmonia das estrelas.

            Inúmeras são as passagens bíblicas que se referem à hospitalidade como uma forma prática de serviço ao próximo, de demonstração a outros da generosidade, como um dom que melhora e se aperfeiçoa quanto mais o exercemos com afabilidade e cortesia. Jesus se hospedou durante suas viagens de pregação nas casas de Marta, Maria e Lázaro, em Betânia, e na de Zaqueu, o rico publicano. Paulo e seus discípulos ficaram em casa da romana Lídia e, em Corinto, com Áquila e Priscila, que provaram com isso que há mais felicidade em dar do que em receber. Em compartilhar o que temos com as pessoas em suas necessidades. Era comum então lavar os pés do hóspede, recostá-lo debaixo de uma árvore, fazer uma fogueira quando estava frio, trazer um bocado de pão até que o peregrino refizesse as suas forças.

            Além das estalagens e dos estábulos, espalhavam-se pelos caminhos as tavernas, lugares sujos, com proprietários indignos de confiança, clientes de má reputação e baixa moral. Esse ambiente tétrico me remete ao livro Noite na Taverna, do nosso poeta ultrarromântico Álvares de Azevedo. Uma coletânea de narrativas mergulhadas num clima mórbido de roda de bebedeira, devassidão, companheiros vampirescos dialogando sobre loucuras com mulheres ébrias, misturando divagações filosóficas com lascívia sôfrega. Contos góticos de homens que se apaixonam por virgens misteriosas que levam à morte. Quanto cansaço precoce da vida. Quanta descrença, cinismo e deboche. Sim, eram sombrias as tavernas para os cavaleiros que se aventuravam na obscuridade dos tempos.

            O comércio forçava à busca por hospedagem. Em 1870, o parisiense Cézar Ritz investiu na hotelaria como a conhecemos hoje: bons quartos com banheiro privativo, gerentes e recepcionistas. No Brasil, por iniciativa dos portugueses, o Mosteiro de São Bento recebeu visitantes ilustres no período colonial. O Hotel Glória e o Copacabana Palace brilham até hoje como ícones de glamour . O fervilhante centro de São Paulo do começo do século XX tornou-se marco histórico do desenvolvimento desse segmento. E depois da Revolução Industrial e da Segunda Guerra Mundial, a hotelaria sofreu transformação radical com os aviões e os fluxos de viagens internacionais incentivando o turismo sem fronteiras.

            E por falar em hotéis urbanos, registramos o genial romance Hotel Atlântico, a obra mais celebrada do autor gaúcho João Gilberto Noll, um mágico da linguagem. Em um hotel de Copacabana, um homem se depara com um cadáver sendo levado para o IML, carregado pelas escadas. Esse acontecimento dá início a um percurso inesperado, onde o narrador sem nome se encontra repetidas vezes com a morte e com personagens esquisitas e inusitadas. Ele é um viajante em busca de algo que nunca fica claro o que é. É um questionamento profundo, uma rota de fugas e incertezas, a saga de alguém sem passado e sem futuro, sendo obrigado a tomar decisões a cada nova situação de um presente angustiante. Um salto no abismo até a última página.

            Exercendo nossa antiga atividade de hoteleiros, queremos nos colocar no lugar de nossos hóspedes. Cada um que aqui chega carrega na alma e na bagagem um vazio, uma ansiedade, uma missão: a falta dos familiares, a busca do sustento, a resolução dos problemas, a expectativa de evolução, a instabilidade, o desejo de conhecimento e aventura, as maquinações secretas do espírito. De portas abertas, pedimos proteção divina para este estabelecimento. Que espadas desembainhadas expulsem as intenções sórdidas dos malfeitores.

            O corredor até a recepção é estreito e cheio de folhagens. Ouço passos se aproximando e um vulto branco na luz. Sem saber, já acolhemos anjos.

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