Crônica de Rogel Samuel
Rogel Samuel é Doutor em
Letras e Professor Aposentado da Pós da UFRJ. poeta, romancista,
cronista, webjornalista.
Site pessoal: http://www.geocities.com/rogelsamuel
TEMA E VARIAÇÕES DO "LIVRO DE HORAS" DE RAINER MARIA RILKE
Que dizem essas mãos com os pincéis que nos cabelos tens, sobre o que, com que componho teu meu amor, enquanto em silêncio observas mergulhada no teu mistério azul, na tua orla de mar, nos teus olhos insondáveis, quase apavorantes, à margem de tua pele de ouro luminoso, - sim, que dizem e transmitem meus trêmulos dedos quando te tocam o desnudo ventre, e ousam te tocar a tátil música que me aparece, como se de uma pomba flor fosse constituída, ou de mil ilhas ametistas e cristais, oh, quando teus braços de amor me pendem, me fendem, me prendem nos espaços em que te envolves e te enlaçam - e que fazem minhas mãos quando te sinto hoje nos limites dos teus ninhos e que te percorrem nos hesitantes meios, a te mover como se fosses minha? Já não estás no âmago de tudo, lá onde todos os traços de tua dança de anjos se consomem. Teu céu inteiro em mim reside e ali desaparece, e por mim passa, e eis que me calo para te pensar. Assim te tem pintado aqueles deuses maiores, trazidos pelo sol. Assim te amadurecia a fruta do mais puro calor da luz tropical. Assim era o véu dos sentimentos que não revelavas nunca, o teu surpreendente mistério. Eras a ave. Amo-te assim, de tão longes vôos, como um menino que se sabe impotente pois inacessível esperança. Eu bem sei que és a terra, a guerra, o cume, o verdejante rastro, mesmo porque te sonho onde não persistes, onde não foram lavradas as minhas palavras de ti. Uma vez alguém me viu contigo e não acreditou, não pensou, éramos nós nem imaginávamos quão felizes inseparáveis completos naquele momento. Mas não sei porque aos poucos houve essa queda, essa fresta, esta frase que voa como tivesses as mesmas asas, lá e já, na minha boca onde não reside o teu gemido meu e suspensão da voz. Que me chega. De muito longe. Saída do anteceder do horizonte ponte como grossa chuva fecundante. Úbere. De tanto te bordarem na luminosidade primavera, foi-se o dia em que hospedei as tuas claras terras, neste solo fecundo, claras messes. Mas longe hoje, fluindo o tempo, ingresso, regresso para casa sem ti, é muito escura esta minha liberdade. Não, amor, não te recomeço não te reconheço nesta figura de opala opaca, pesada, no pomo pintado que foi o alicerce obscuro e fetíchico, frustrado dos meus muros e da tua juventude solitária. O livro que contém as chaves necessárias está fechado, as histórias a todo momento se concluem, e se alteram - passastes além do fio da pedreira cega, tomastes a forma silenciosa daqueles gigantescos edifícios onde não posso entrar. Reduzistes-me ao pó dos velhos monumentos fúnebres, cegos, velhos cânticos tidos, maduros demais para te realizar, para te cantar neste tom tão romântico. Nem mais te amo ainda, que sem o mesmo amor edificante, eterno, estudado, passeaste por mim como uma epidemia consentida, e em mim pousando como aeronave, - oh mãos salgadas, mãos ensangüentadas que me dizem? Tu és um jardim cheio de vida!
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