Raquel Naveira

Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.    

Coluna semanal de Raquel Naveira
Nº 58, 26/7/2016

CORUJA

                Sobre um poste, entre árvores de folhagens densas, brilhava uma coruja: lâmpada, bruxa, magia seleta. Seus olhos amarelos, destacados como faróis na noite de lua, fixam-se em mim e quase posso ouvi-la chamar meu nome.
                Enquanto ela remexe as asas e afasta os óculos de aros pretos, lembro que essa dominadora da morte, guardiã das moradias escuras, era a ave que acompanhava Atena ou Minerva, nomes grego e romano da mesma deusa da mitologia. Era a deusa da sabedoria; da pureza e da autonomia; do trabalho incessante em prol da civilização; da guerra justa, calculada como estratégica forma de arte. Patrona dos ofícios e da cultura da oliveira, fonte sagrada de óleo e unção. Nasceu de uma agressão, um golpe de martelo de Hefestos ou Vulcano na cabeça de Zeus. Nasceu, portanto da cabeça do pai, da razão, vestida com uma armadura masculina, empunhando uma enorme lança de prata.
                Como professora, formada em Letras, sinto-me representada pela coruja. Ela é inteligente, arguta, sensível, com visão e audição potentes percebe segundas intenções no barulho do vento. A sua cabeça redonda como um globo terrestre derrama pensamentos universais e conceitos filosóficos por todos os cantos do mundo. O seu coração pulsa no peito, pois é preciso ensinar com ousadia, generosidade, coragem e aprender ensinando. Platão a tomou por conselheira, pois a considerava protetora dos artesãos e admirava sua capacidade de ser prática. Como símbolo do magistério, geralmente ela é desenhada com capelo, diploma e capa debruada de arminho, sobre livros e lápis, que ela agarra com firmeza intelectual, cultura e pedagogia. A cauda de lado sinaliza o equilíbrio de sua personalidade segura.
                Identifico-me também com a coruja como mãe, com a expressão popular “mãe coruja”, que surgiu graças à célebre fábula “A Coruja e a Águia” do escritor La Fontaine. Conta a história, que a coruja encontrou a águia e lhe disse que se visse uns passarinhos muito lindos, num ninho novo, com biquinhos em forma de castanhas, que não os comesse, pois eram seus filhos. A águia prometeu que não os comeria. Foi voando pelos altos picos e encontrou numa figueira um ninho de folhas frescas. Abocanhou todos os filhotes.                 Quando a coruja chegou e viu que lhe tinham comido os filhos, foi ter, muito aflita, uma conversa com a águia. A coruja argumentou que a águia fora falsa e quebrara uma promessa. A águia defendeu-se dizendo que encontrara uns pássaros feios, desengonçados, sem bico  e que fora enganada pela cegueira da coruja. Aos olhos das mães, os filhos são perfeitos. Fecha-se a fábula com a seguinte moral: “Quem ama o feio, bonito lhe parece.” Não escapo. Sou uma mãe coruja, preocupada com meus filhos. Gostaria de protegê-los sempre e, embora às vezes incompreendida, cubro-os com fé e amor.
                A coruja impõe respeito. Não se pode caçá-la como um pássaro qualquer, nem comer sua carne. Está lá impresso na lei judaica que não se pode comer coruja-de-chifre, coruja-de-orelha-pequena, o mocho, a coruja branca, a coruja pescadora e a coruja do deserto. Seria como fazer um pacto louco com as trevas.
                Quando esta Babilônia em que vivemos ruir, com todo o seu sistema econômico, político e religioso, que nos seduz e suga nosso sangue, a cidade apocalíptica será reduzida a possessão de corujas e lagoas de águas, varrida com a vassoura da perdição.
                Contemplo a coruja sobre o poste entre as árvores copadas do grande Parque dos Poderes. O seu pio forte estremece meu coração. Mantenho-me serena. Sou um ser que medita e se entrega a chuvas e tempestades, como ela. Tenho certeza que chamou meu nome.

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