Raquel Naveira
Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.
Coluna semanal de Raquel Naveira
– Nº 40, 26/08/2015 –
Assim como o Sr. Grandet, célebre personagem de Balzac, autor da Comédia Humana , guardava com avareza moedas de ouro sob a escada de seu soturno casarão no interior da França, meu avô português guardava azeite. Empilhava latas e latas no vão formado pelos degraus de madeira, em estranhas construções. Eu observava as figuras: o galo de Barcelos, de fundo preto, pintura colorida, crista vermelha; os olivais, as pontes sobre os rios e a mulher de xale florido que certamente se chamava Maria e dançava o vira. O azeite vindo da aldeia de Figueira da Foz, pertinho de Coimbra, se misturava em nossas refeições à salada, ao pão, ao vinho, ao peixe, às lembranças da terrinha.
O azeite é mesmo um elemento extraordinário, milenar. Na culinária é ouro líquido, que dá sabor, aroma e acidez aos pratos. Mas também servia como unguento, bálsamo, perfume, combustível para iluminação. Teve um papel fundamental para os povos antigos do Mediterrâneo e do Oriente. Os santos óleos acompanhavam o começo e o fim, o alfa e o ômega, o batismo e a extrema-unção, purificando e protegendo as almas pelos caminhos do mundo dos vivos e dos mortos.
O azeite de oliva é extraído da azeitona, fruto da oliveira. A oliveira é árvore sagrada, símbolo da paz, da força e da fecundidade. Os gregos acreditavam que era um presente da deusa Atena ou Minerva, deusa da sabedoria, que trazia a prosperidade e a luz que alimentava as lâmpadas. Os reis de Israel, como Davi, eram ungidos com azeite que lhes conferia autoridade, poder e glória. Os soldados eram untados de azeite antes de enfrentar os campos de batalha.
Gosto da passagem bíblica que conta a história da viúva de Sarepta. Essa mulher sem nome, do povoado de Sarepta, é um exemplo de humildade, fé, coração bom e hospitaleiro. Era tempo de seca. O profeta Elias foi enviado por Deus à casa da viúva, onde ela vivia com seu filho único. O profeta pediu que ela preparasse um bolo para ele. Ela explicou que só tinha um punhado de farinha de trigo e um pouco de azeite para fazer um bolo para ela e seu filho que comeriam e, depois, morreriam de fome. Súbito, ela sentiu nos olhos do profeta uma doçura estranha. Foi tomada por uma reverência, um reconhecimento de santidade. O Deus de Elias não era seu deus. Ela era pagã e pobre. Decidiu com sabedoria e coragem dividir o pouco que tinha com aquele peregrino do deserto. Apostou. Correu o risco. E nunca mais a farinha da panela se acabou nem faltou o azeite da botija, até que a chuva descesse sobre aquela terra.
Faz tanto tempo. Meu avô, minha avó. Sentávamos à mesa, o retrato estampado na lata parecia ouvir as histórias sobre as ruas estreitas de Alfama, os versos de Camões e Pessoa, as colheitas de uva, as receitas de bacalhau. À tardezinha, quando da porta da cozinha, avistavam-se as luzes da cidade, minha avó pegava uma colher de azeite, despejava numa tigela branca e benzia quebranto. Os lábios murmuravam preces, o azeite sumia misteriosamente na água. A febre e a opressão cessavam.
Desde cedo vivi o ritual do azeite. Fui toda ungida: o corpo, os cabelos, a pele, o plexo solar, a mente, o espírito sedento. O óleo escorria até a orla dos meus vestidos, encharcando-me de orvalho. É por isso que flui de mim uma energia espessa, alaranjada e quente.
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