Christina M. Herrmann é poeta, webdesigner. Carioca, vive atualmente na Alemanha. Comunidades no orkut: "Café Filosófico das Quatro", "Sociedade dos Pássaros-Poetas" ambas de entrevista e "Orkultural" em parceria com Blocos Online.
Endereço do Blog, reunindo todos os seus sites e comunidades:
http://chrisherrmann.blogspot.com
Coluna 81 - 1ª quinzena de abril
(atualizações: todo dia 8 e 24 de cada mês)
CRÔNICAS POÉTICO-FILOSÓFICAS
Nesta série trazemos as melhores crônicas poético-filosóficas extraídas das comunidades " Orkultural " , "Café Filosófico das Quatro" e "Sociedade dos Pássaros-Poetas ".
O perfume da bondade
Ernesto von Rückert
Era um homem ingênuo, bobo mesmo. Mas não era burro. Só confiava nas pessoas e não punha maldade. Muitos lhe tapeavam em negócios e, quando ele percebia, já era tarde. Mas isto o magoava. Sempre foi muito escrupuloso em não enganar a ninguém. Daí subestimava, por precaução, suas mercadorias. Se alguém o tapeasse, não tinha importância, o erro não era seu, mas, se ele enganasse alguém, a consciência não lhe permitia dormir até reparar o malfeito. Nunca deu cano, só que era esquecido. Não por desleixo ou irresponsabilidade. É que vivia no mundo da Lua. Pés no chão é que não tinha mesmo. Esquecia de pagar, mas esquecia também de cobrar. Só pensava no mundo feliz dos seus sonhos e nos carinhos doces de sua patroa.
No trabalho era um capricho que fazia gosto. Nunca importava com a trabalheira, o gasto de tempo, o cansaço ou de ser mal pago. O importante era ver como seus olhos brilhavam ao concluir um serviço perfeito. Fazia e consertava móveis. Estofados, torneados, lavrados com formão, que saiam lisinhos que nem precisava lixar. E o verniz (de boneca) ficava que nem piano importado. Um espelho. Sua especialidade eram os encaixes de asa de andorinha. Os armários não tinham prego algum. Nem compensado, nem nada disso. Só tábua de lei: mogno, cedro, jacarandá, imbuia, marfim. Estilo “Chippendale” ou “Luiz XV”, que copiava direitinho das revistas amareladas. Pezinhos de pata de onça ou de cabra. Mandava vir as dobradiças e fechaduras do Rio de Janeiro. Tudo de metal amarelo, coisa fina.
Mas a família foi crescendo e as despesas aumentando. A patroa se virava nas costuras, as meninas no serviço da casa e os meninos cuidando da horta e do pomar. Mas todos iam ser doutores. A Mariazinha já se via professora, a Ritinha enfermeira, o Mauro ia advogar e o Eustáquio ser construtor. Para isso ele já ia comprando os livros e fazendo eles lerem todo dia, até mesmo literatura. Pena que nenhum ia ser médico e ele já se preocupava com os problemas de saúde na sua velhice e da patroa.
Mas começaram a aparecer as lojas com móveis de fábrica. Daquele bem fuleiros, cheios de prego e compensado, com dobradiças de plástico, que se estragavam num instantinho. E os estofados, por baixo dos panos, eram caixotes de feira desmontados. Uma feiúra que só vendo. Mas eram baratos e as lojas vendiam a prestação, a perder de vista. A freguesia caiu. E ele só entrando em dívidas. Não tem problema, meus filhos vão ser doutores e me amparar logo, logo, é o que dizia.
Mas credor não tem coração, ainda mais que agora não eram mais os cumpadres, que, amigos que nada, lhe davam as costas e o mandavam aos bancos, que chegaram para isto mesmo. Exatamente para lhe tomarem a oficina, leiloada na porta do fórum e arrematada por seu melhor amigo.
Como arranjar emprego nesta idade? As fábricas de móveis fuleiros não queriam saber de oficial sabichão para ficar pondo defeito em tudo. O jeito foi ajudar a mulher nas costuras, pregando botão, alinhavando, chuleando e passando. Mas a vista ruim não ajudava.
O coração não agüentou a humilhação e deu para falhar, a princípio rateando até que um dia parou de vez. Os filhos, estudando na capital, nem puderam ir ao enterro, por causa das provas. No velório, só a patroa e as ajudantes da costura. Na hora, por causa da chuva, nem foram ver a terra ser jogada em cima. O coração da patroa, desgostoso, não durou nem mais três meses. Desta vez os filhos puderam vir enterrar a mãe.
Aí fizeram a partilha daquele pouco de tudo. Sem briga, pois não eram gananciosos. Mas não deram muita importância às velharias, que distribuíram para a gente mais pobre ainda da vizinhança, já de olho arregalado no butim. E voltaram para a capital, onde cada qual fez sua vida, um prá cada canto, não tendo nem a casa dos avós para se encontrar e levar os filhos nos natais. Passavam os natais nas casas das sogras.
Poucos anos depois, nem lembranças deles eles tinham. A vida passou e acabou, nada espetacular, nada a ser registrado. Só uma gota de bondade e retidão, como a de um extrato, diluída num oceano, a espalhar um discreto perfume para lembrar que esta vida não significa nada e ninguém se importa com ninguém, mas, mesmo assim, só elas é que importam.
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