Coluna de Rogel Samuel 
Rogel Samuel é Doutor em Letras e Professor aposentado da Pós da UFRJ. poeta, romancista, cronista, webjornalista.
Site pessoal: http://www.geocities.com/rogelsamuel

Nº 86 - 2 ª quinzena julho
(próxima coluna: 10/8)


O DOMADOR DA MONTANHA


Obra inédita

Capítulo 1: O AJUSTE DO PARAFUSO

            Não no passado, isso se passará num futuro muito distante.
            ANL tentava ajustar o parafuso ou aquela lingüeta que, para nós, seria um parafuso. Pressionava com a unha a fenda, procurando mover o parafuso. Mas o parafuso resistia, imóvel. Como insistisse, quebrou uma pequena lasca da unha e dali jorrou, de seu dedo (ou do que seria um dedo), um líquido gomoso e grosso. Uma grossa gota espessa, branca.
             ANL limpou a ponta do dedo com a língua (se é que podemos chamar de língua aquela extremidade de seu corpo), como se estivesse comendo o dedo.
            Inteiramente só, deixava brilhar ao sol o belo corpo dourado e nu. Ele parecia feito, construído em metal, ou em ouro puro (se é que não o era).
            ANL estava sentado naquela laje, no alto da Montanha, na entrada da gruta de onde a pedra saía como uma língua sai da boca aberta, projetada sobre a garganta daquele profundo abismo, na solidão das montanhas de Yanglesho, ou Pharping, as montanhas sagradas, altíssimas.
            Mas isso se passou ou passará não no nosso tempo não, nem no passado: acontecerá, num futuro muito distante.

             Já fazia algum tempo que ele morava naquelas montanhas, em solidão. Procurava um lugar onde pudesse estar quieto, meditar, em segurança. Mas não havia calma continuada, não havia segurança completa em lugar algum. Os inimigos estavam em toda parte, podiam chegar a qualquer hora. Ele sabia. Por isso, precisava ajustar aquela luneta para ver quem eram aqueles longínquos seres que se aproximavam, à distância.
             Sim, uma pequena caravana se aproximava, bem longe. Através de sua luneta agora podia vê-los: eram cavaleiros, guerreiros, desconhecidos. Ainda iam levar algum tempo para achá-lo, ali. Mas certamente acabariam encontrando-o.
            ANL começou a considerar sobre o que faria. Poderia fugir. Porém não mais agüentava a idéia de viver fugindo para sempre. Ele já tinha vindo das longínquas regiões do Sul, onde nascera. Nascer não é bem o termo: onde “apareceu”. Estava disposto a se isolar, por um tempo, para afinar o ritmo de sua mente, entrar em comunhão consigo mesmo. E aquela gruta era boa, apesar do túnel. Sim, havia aquele túnel, no fim da gruta: um buraco estreito que, como um túnel, descia por toda a cavidade da montanha, percorrendo-a por dentro, até o vale. Aquele túnel fora sempre motivo de preocupação para ele, porque às vezes dali saía e aparecia um pequeno dragão venenoso, uma espécie de serpente, que ali vivia, e ameaçava atacá-lo. Mas ANL sabia que em nenhum lugar do planeta havia a mais completa paz naquela era degenerada. A época estava terrível. Ele por isso já tinha planos de viajar mais para o Norte, mais para o alto, até as elevações geladas das grandes montanhas, os Himalayas, as rainhas das montanhas. Para o monte Khailás, talvez, onde nasce o rio Sindhu. Sim, talvez lá pudesse permanecer em paz, em meditação, sem preocupar-se com sua própria defesa e segurança, sempre ameaçada.

* * *

            O jardineiro do palácio acordava muito antes do sol nascer para ver as flores do rei.
            O rei era Indrabodhi, o segundo, rei de Odiyana, que tinha muito ciúme de suas flores e do seu lago de lótus, chamado Danakosha, formado pelas águas do rio Sindhu, que nasce no monte Khailás, nos Himalayas.

            O jardineiro trabalhava num jardim privativo da família real, embora gigantesco, que tinha florestas e canteiros em disposição retangular de diferentes plantas. Mas isso se passou num tempo muito diferente do nosso, e não no passado, mas no futuro. Sim, não estamos nem no passado nem no presente, mas no futuro.

            O jardineiro velho se arrastou até as mais novas glicínias das margens do lago, o Danakosha, que tinha o apelido de “oceano de leite”, porque os caules dos lótus produziam um suco branco, lácteo, bem doce.

            Amanhecia.

            De repente, um som apareceu no céu, um som de “Shriiii!”, e alguma coisa despencou de lá sobre um daqueles lótus, através de uma luz vermelha e brilhante, e o lótus se acendeu como se fosse uma luminária de luz vermelha, e foi assim que lá apareceu uma criança de cerca de oito anos, segurando um lótus e um vajra nas mãos.

            Essa criança era ANL.

            O velho parou por um instante imóvel e pasmo, e aterrorizado, mas como viu que era um menino novo e que o menino falava como gente grande e como que fazia um discurso, dirigindo-se talvez para os seres invisíveis do lago, discurso esse que para o velho era completamente ininteligível, o velho perdeu o medo e decidiu averiguar.
             Mas o menino era muito bonito e sorria, e assim o velho tomou o barco e foi buscar o menino, no meio do lago.

            Logo apareceram jardineiros e soldados, atraídos pelo estrondo, e ficaram animados com aquela aparição.

            O menino foi levado ao palácio.

            Mas o rei não estava.

            O rei Indrabodhi estava em viagem.

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