Coluna de Rogel Samuel
Rogel Samuel é Doutor em
Letras e Professor aposentado da Pós da UFRJ. poeta, romancista,
cronista, webjornalista.
Site pessoal: http://www.geocities.com/rogelsamuel
Nº 94 - 2 ª quinzena outubro
(próxima coluna: 10/11)
O DOMADOR DA MONTANHA
Obra inédita
Capítulo 7: A PARTIDA
ANL partiu.
Ao sair da gruta, um pássaro voou, uma águia, em direção ao Norte.
ANL desceu a montanha, caminhou, sereno.
Alguns pequenos animais acompanharam seus passos, por algum tempo. Uma revoada de pássaros agitou o céu, sobre sua cabeça. Durante algum tempo, as árvores se agitaram e com isso lançaram um tapete de flores sobre seu caminho no vale perfumado.
O dia vinha nascendo, glorioso.
Ele parou diante de um riozinho, bebeu um pouco de água. Do brilho das árvores ao sol se exalava pelo ar um apelo silvestre.
Não havia ninguém naquelas terras. Não havia ninguém, naqueles vales e florestas. Os ares respiravam as primeiras flores do dia. Os córregos, límpidos, frios, deixavam correr suas águas cristalinas, vindas das montanhas, vindas do Himalaia.
ANJ caminhava entre a ramagem.
Em nada pensava, sua mente era calma, luminosamente vazia, como de costume. Ele era pura atenção luminosa, pura concentração compassiva, por isso sua mente como que aparecia, luminosa, abrindo-se no espaço, como uma aura de cinco cores.
O mundo se exibia, extremamente belo, aos raios da luz do sol. Nunca os pássaros estiveram tão alegres, no céu. Alegres, mas respeitosos.
Mas ANL caminhava rapidamente. Atravessou completamente o vale e, à tarde, começou a subir as primeiras montanhas. Quando anoiteceu, procurou e encontrou uma gruta, onde fez fogo, chá com cevada, e sentou-se em meditação.
***
No dia seguinte, porém, o tempo mudou. O amanhecer custou a aparecer, o inverno chegava. O céu pintou-se de um cinza escuro, metálico, ameaçador.
Mas, alheio àquela transformação do clima, ANL caminhou o dia todo até que, à tarde, quando já estava no alto da montanha, uma grande tempestade desabou sobre o mundo.
Caiu a temperatura abaixo de zero. Anoiteceu logo. Sobreveio uma grande nevasca, um forte vento que uivava, horripilante, como saído da garganta do dragão.
Então, sorrindo, ANL procurou o abrigo de uma gruta.
Depois de certo tempo, encontrou uma fenda na montanha. Por ali entrou. Subiu uma vereda, encontrou uma profunda caverna.
ANL entrou ali, mas logo que entrou percebeu que lá morava um felino que estava ausente. Mas, no momento, o lugar era apropriado.
ANL fez uma pequena fogueira. Aqueceu-se, comeu uma papa de farinha de cevada, chá e um tipo de biscoito.
O frio era intenso. A temperatura caiu e rapidamente alcançaria níveis quase insuportáveis: por isso ele entrou em meditação profunda, desenvolvendo e aumentando o calor interno do corpo.
***
No meio da noite, chegou ali um enorme tigre.
Era um gigantesco animal da montanha, um tigre de Bengala, e deveria ser o morador daquele lugar. Tinha quase três metros de comprimento, dourado sobre rajado negro, uns trezentos quilos.
ANL não saiu de sua meditação.
Mas de dentro de sua meditação, mentalmente, falou ao animal que o contemplava, os olhos terríveis, abertos: “Eu sei que esta é sua casa, mas amanhã saio daqui. Fique calmo que não vou atacá-lo. Aproveite o calor desta fogueira. Infelizmente, nada mais tenho a oferecer”.
O tigre, na entrada da caverna, continuava olhando-o, assombroso, mas em silêncio.
Então o que se passou foi o seguinte: o animal se aproximou, andando ao redor da sua gruta e da fogueira acesa, e veio até onde ANL estava.
O grande tigre ali se aninhou, aos pés de ANL, aquecendo com seu imenso corpo as pernas do iogue.
E começou a dormir, tranqüilo.
No dia seguinte, quando ANL saiu da meditação, viu que o tigre estava a seus pés, e o adorava.
ANL a princípio temeu assustá-lo, mas o tigre, extremamente sensível, logo percebeu que ANL abria os olhos.
ANL fez chá com cevada e viu que sua alimentação não era suficiente para alimentar o tigre. Ofereceu-lhe biscoitos, que o tigre aceitou e comeu.
ANL partiu. O tigre o seguia.
Durante toda a manhã andaram juntos até que, em certo momento, o tigre se afastou e sumiu.
Já era quase noite quando ANL sentiu que uma grande fera o perseguia. Preparou-se para defender-se ou fugir, mas aquilo ia rápido e atravessou o seu caminho: era o mesmo tigre que ali estava, e em sua boca trazia uma pequena gazela morta.
ANL parou, imóvel. O tigre depositou a gazela a seus pés. Um oferecimento.
Depois, o animal o guiou para uma gruta, antes que a noite caísse completamente.
ANL acendeu uma fogueira ali e assou a gazela.
Quando o jantar ficou pronto, cortou em pedaços e ia dando para o tigre. Mas compreendeu que devia também comer, para recompor suas forças. Não podia recusar o presente recebido. E comeu um pedaço.
Depois ele fez chá, com cevada e mel.
E dormiu. Dormiu profundamente. Mas mesmo em seu sono profundo, ele meditava.
Profundamente.
Aquela foi uma noite suave. ANL se alimentara bem, dormira bem. E sentia-se protegido. Seu amigo tigre, muito sensível, estava muito alerta à qualquer aproximação.
E naquele mesmo dia ANL teve de atravessar um rio. O tigre se ofereceu, como montaria.
E a partir de então ANL viajou montado num tigre. Em direção ao Tibet.
Assim se passaram vários dias de caminhada.
ANL viajava somente quando seu amigo tigre o levava. Quando o animal se recusava a partir significava que estava vindo uma tempestade, ou que algum perigoso animal estava próximo.
Já tão próximo do tigre como amigo, algumas vezes ANL brincava com ele. Chegava a dormir fazendo-o de travesseiro.
Mas dia a dia se aproximavam do Tibet, e cada vez eles estavam mais alto, mais para o Sul.
Um dia, ANL disse para o tigre:
– Até agora você me seguiu e protegeu, até agora você me auxiliou. Eu agradeço. Mas de hoje em diante tenho de seguir só. Estou perto das terras do País das Neves, e terra dos demônios, que estão esperando por mim. Cabe a mim enfrentá-los, ou morrer. Mas não posso morrer, antes de cumprir minha missão. Não posso morrer, porque nada pode matar-me. Se você for comigo não poderá socorrer-me desse novo perigo, mas pode ser atingido. Esta luta é só minha. Volte para a sua terra. Eu não o esquecerei.
Assim disse.
Tendo dito isso, ordenou que o animal se retirasse. O imenso tigre veio até ele, fez três circum-ambulações em torno dele, e partiu.
Naquela noite ANL pernoitou na fronteira do Tibet, em meditação, empunhando a lança.
No meio da noite uma sinistra presença se fez sentir. As árvores se curvavam, abatidas por um vento feroz. Um gigantesco e sinistro uivo se ouviu, como de uma loba no cio. Depois, o som ameaçador de uma gargalhada feminina, como se a noite se personificasse numa arrogante feiticeira, que perto dali estava, como um gigantesco demônio.
Era uma entidade feminina, violenta, cruel, terrível. Do seu corpo saía um terrível elemento escuro e ameaçador. Ele estava na encruzilhada, e com os braços impedia o caminhar. Como uma voz rascante, sibilina, disse para ANL:
– Daqui você não passa!
– Quem é você, ó poderosa deidade? – perguntou ANL.
– Eu sou Mutsamey, ah, ah, ah. Ninguém ousa desafiar-me. Saiba que esta terra me pertence. A mim! A mim! Eu sou a poderosa deidade dessas montanhas. Sou a Protetora da religião Bom. E se ria, e gritava.
E desapareceu.
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