Raquel Naveira

Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.       

Coluna semanal de Raquel Naveira
Nº 44, 24/9/2015

CEGO

                Em volta da mesa, os amigos conversam sobre arte, cinema, literatura. Alguém se lembra de Jorge Luís Borges, o escritor argentino que ficou cego. Ele, o professor que conhecia cada livro da Biblioteca Nacional, onde fora diretor por tantos anos, entrou um dia nas galerias do metrô, no trem de vidro, ferro e chispas e saiu de lá tonto, sem visão. Foi a partir desse instante que começou a criar símbolos no escuro: labirintos, sonhos, caudas de tigres, livros de areia. Atravessou o jardim das veredas que se bifurcam, o caos que governa o mundo, a irrealidade da escrita. Porque o cego participa do divino, é vidente, é estranho, caminha por uma realidade secreta, proibida aos comuns dos mortais.

                Imediatamente citou-se Homero, o bardo da Grécia Antiga, o autor cego da Ilíada e da Odisseia , as maiores narrativas de guerra e de amor da humanidade. O cerco a Troia. A imprudência do príncipe Páris apaixonando-se pela bela e trágica Helena. O corpo de Heitor estraçalhado pelas bigas ao redor dos muros da cidadela. A armadilha do cavalo de madeira. As aventuras do grego Odisseu ou Ulisses na travessia do mar. O encontro desse herói com Tirésias, o profeta cego de Tebas, que viu uma vez a deusa Atena se banhando nua numa fonte. A cegueira como castigo, expiação. Foi Tirésias, com seus olhos cegos de iniciado, que levou Ulisses ao Hades, aos Infernos, à mansão dos mortos, onde nenhum ser vivo até então penetrara.

                – Ah! E não esqueçam que Camões ficou cego de um olho numa batalha, salientou a poetisa de fala doce. Deve ter sofrido em seu orgulho. Era moço bonito, loiro arruivado, temperamental. Mais um golpe do destino, mais uma adversidade pressionando seu espírito turbulento. O buraco do olho sempre tampado por uma tira de couro negro como um pirata. O importante é que escreveu Os Lusíadas e nos mostrou o quanto era plástica a língua portuguesa, capaz de narrar o épico e expressar as mais finas modulações da alma.

                – E do cego do conto “Amor”, de Clarice Lispector, alguém aí se recorda? Está no livro Laços de Família . Ana, uma dona de casa pacífica e forte como um lavrador, mãe de dois filhos, sobe num bonde e percebe a presença de um cego. Um homem cego que mascava chicletes. Ela se perturba, desce no Jardim Botânico, sente uma náusea doce, uma piedade de leão, enquanto observa os troncos carregados de frutas pretas. O cego lhe mostrara o quanto a vida era periclitante. Que ela gostaria de seguir o seu chamado e ir a lugares pobres e ricos que precisavam dela. Foi tomada pelo medo e pela pior vontade de viver, de optar por uma missão livre, totalmente diferente da escolhida por ela. O cego fez com que ela fosse atingida por uma vertigem de bondade, pelo demônio da fé.

                Nesse ponto, eu disse: – Jesus curou três cegos de maneiras diferentes. O primeiro estava sentado à beira do caminho de Jericó. Quando o Mestre passou, gritou, implorou misericórdia e ele o atendeu. O segundo foi curado gradualmente, pois a princípio via homens como se fossem árvores andando. O terceiro era cego de nascença, foi curado com saliva e lodo, lavado no tanque de Siloé.

                O jornalista cético sorriu. Afirmou que não cria em milagres e que os dois primeiros cegos até poderiam ter sido curados, mas nunca o cego de nascença, sem nervo ótico. Impossível. Repliquei baixinho: – Foi curado pelo dono da Luz.

                Aquela escritora que ama o Oriente, explicou que os hindus alcançam a iluminação espiritual fixando os olhos no sol ardente. Todos concordaram que as aparências são sombras enganadoras, como provou Platão com o mito da caverna, enquanto sorviam goles de café.

                Numa outra reunião, estávamos tristes ao redor da mesa. Nosso companheiro jornalista morrera, subitamente, aos cinquenta e dois anos, numa manhã azul de domingo.

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