COLUNA DE THATY  MARCONDES 
Na área empresarial, trabalhou na implantação de projetos de administração, captação e aplicação de recursos, e ainda em redação e revisão de textos técnicos. Nascida em Jundiaí, reside atualmente em Ponta Grossa/PR, onde exerce o cargo de Conselheira Municipal da Cultura.

2ª quinzena de março - Coluna 85
(Próxima coluna: 3/4)

LIBERTAÇÃO

Nas mãos, a lâmina de fio agudo. O brilho da prata. O cabo em marfim, pedras incrustadas. Na sala o silêncio noturno, a negritude quebrada pelo fio de luz de uma vela sobre a mesinha de canto e pelo fogo que acalentava o ambiente. Ele sentado em frente à lareira, o livro caído no chão, próximo às mãos soltas de forma displicente, ao lado da cadeira. Ela vem pelas suas costas. Caminha sorrateira, na ponta dos pés nus, qual felino absorvendo o ambiente. Pensara num golpe único, no pescoço. Imaginava a cena. A excitação da esperança de sangue. O orgulho da atitude. O brilho de fascínio nos olhos loucos. E depois? Depois, apenas a liberdade, a fuga para o nada, a sensação de poder. Como se livrar da culpa pública? Da vergonha? Do sangue no tapete?

Pena: tão bonita a poltrona de veludo encarnado. Ficaria irremediavelmente maculada com aquele sangue amaldiçoado. Mas ela estaria livre: livre da opressão; livre daquele ser desprezível com gosto de conhaque; livre daquele homem de atitudes vulgares, daquele ser ignóbil e maldito, procurando-a no silêncio das madrugadas de uivos e miados indecentes; livre daquele crápula que a dominava qual algoz praguejado, adivinhado pelas ciganas do tarô, previsto nas linhas de suas mãos de fada prendada. Haveria de ter forças para dominá-lo e atingi-lo de um golpe único. Apenas um. Profundo, certeiro, preciso.

A insegurança e a dúvida: pela posição, teria adormecido? Mãos fechadas às costas, segurando o punhal, herança materna. Perdia-se no tempo as origens da arma, do gosto pelo sangue, da loucura, da viuvez das gerações. Sorrateiramente pousou qual estátua à sua frente. Resistiu ao impulso de apreciar uma mecha caída de cabelo. A imagem do passado refletia-se na retina da imaginação, perdida nas lembranças do tempo. Aqueles cabelos cacheados e louros, compridos, sem dúvida combinavam com seu rosto angular e seus outrora belos olhos azuis como o céu, agora embaçados pela angústia e pela bebida. Garboso, quando jovem, cavalgava comandando seus subordinados. O ser mais lindo de toda região, sem dúvidas. E era seu. Mas apenas no nome, e como proprietário. Não lhe tinha amor. Apenas desejo. O mesmo desejo que fizera com que ela lhe desse filhos: os três com o mesmo tom de azul no olhar, os mesmos cachos caídos sobre a testa, o mesmo porte garboso. Comoveu-se. Um quase arrependimento pelo porvir apoderou-se de sua alma confusa. Um calafrio pela coluna. Um tremor nas mãos. Mais um passo. Não resistiu e tocou seus cabelos.

— Eu te esperava. Há muito que te aguardo para que cumpras nosso destino.

— Passa da hora.

— Mata-me! Acaba com essa espera de anos, essa agonia que me consome, esse desejo latente de teus olhos turvos, essa indecisão do amanhã. Há anos que sou um ser sem futuro, certo do meu fim, te sentindo à espreita, à espera do momento.

— Te amo!

Ainda ao som da confissão, a lâmina faz o corte profundo.

Ela caminha lentamente em direção à porta principal. Abre a porta e sai em vôo apressado. A Fênix se libertara.


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