Coluna de Rogel Samuel
Rogel Samuel é Doutor em
Letras e Professor aposentado da Pós da UFRJ. poeta, romancista,
cronista, webjornalista.
Site pessoal: http://www.geocities.com/rogelsamuel
Nº 99 - 1 ª quinzena janeiro
(próxima coluna: 25/1/2007)
NO MEIO DAS NOITES DOS PARAÍSOS ARTIFICIAIS
Quando desembarquei em Paris quase fui varado por uma saraivada de balas ou despedaçado por uma bomba.
Era o tempo em que estava sendo atacada a França por onda terrorista. Foi meter o pé lá e o Aeroporto acender o alarme de bomba a explodir...
Mas não veio. Não explodiu. Ninguém morreu.
Eu estava vindo de Frankfurt.
Recomendara-me meu amigo alemão K. Joseph um certo hotel barato e maluco, em lugar de onde não me quero lembrar, onde havia de tudo, acontecia de tudo. Na época não existia Aids, a vida sexual corria solta, intensa e livre até que depois se anunciou “A morte dos amantes” de Beaudelaire:
“Vamos ter leitos de sutis odores,
“Divãs que às fundas tumbas são iguais,
“E sobre a mesa as mais estranhas flores,
“Brotando para nós no azul em paz.
“Ambos queimando os últimos ardores,
“Meu coração e o teu, flamas sensuais,
“Refletirão em dobro as suas cores
“Em nossas almas, dois gêmeos cristais.
“Por uma tarde mística e envolvente,
“Trocaram um só lampejo ardente,
“Como o soluço em cada adeus contido;
“Pouco depois um Anjo, abrindo as portas,
“Há de avivar, alegre e enternecido,
“Os cristais já sem brilho e as chamas mortas”
Por exemplo, um dia, na porta daquele hotel, manhã cedo, uma senhora que vinha talvez da missa se dirigiu a mim, simpática, bem vestida, cabelo preso por uma rede e falsas pérolas no pescoço e perguntou:
—Bom dia, Senhor, de que o senhor gosta?
Na hora não entendi e ela sorriu com toda aquela beatitude da boa avozinha e perguntou:
— De que o Senhor gosta? Gosta de rapaz ou de uma garota?
Devo ter ficado vermelho, amarelo, pálido, bobo, não esperava tal pergunta de tão venerável dama, porém a cafetina, aquela santa senhora... me lembrou os versos de Beaudelaire:
“Nos fanados divãs das prostitutas velhas,
“Os cílios de azeviche, o olhar meigo e fatal,
“Cheias de tiques, e que fazem das orelhas
“Cair um tilintar de pedra e de metal;
“Rostos sem lábio em torno de uma mesa de jogo,
“Lábios sem cor, tíbias mandíbulas sem dente,
“E mãos convulsas que uma febre deixa em fogo,
“Palpando o bolso escasso e o seio inda fremente;
“Sob o teto encardido, agonizantes lustres
“E lamparinas a jorrar grandes clarões
“Sobre trevosas frontes de poetas ilustres
“Que ali vêm esbanjar os suores e emoções;
“Eis a cena de horror que num sonho noturno
“Ante meu claro olhar eu vi se desdobrando,
“Eu mesmo, posto a um canto do antro taciturno,
“Me vi, sombrio e mudo, imóvel, invejando,
“Invejando a essa gente de pertinaz paixão,
“Às velhas putas o seu fúnebre esplendor,
“E todas a vender de si algo em leilão,
“Uma beleza, outra o patético pudor!
“E me assustei por invejar essa agonia
“De quem se lança numa goela escancarada,
“E que, já farto de seu sangue, trocaria
“A morte pela dor e o inferno pelo nada!”
E como fiquei num apartamento sem banheiro, barato, tinha de pagar para receber a chave da “sala de banho” e às vezes havia jovens garotas perto da porta perguntando “se podíamos tomar banho juntos”.
“Eu te amo como se ama a abóbada noturna,
“Ó taça de tristeza, ó grande taciturna
“E mais ainda te adoro quando mais te ausentas
“E quanto mais pareces, no ermo que ornamentas
“Multiplicar irônica as celestes léguas
“Que me separam das imensidões sem tréguas.
“Ao assalto me lanço e agito-me na liça,
“Como um coro de vermes junto a carniça
“E adoro, ó fera desumana e pertinaz,
“Até essa algidez que mais bela te faz! "
Pela noite rapazes e moças bêbados cantavam no corredor e alguns desfilavam nus por puro exibicionismo, ou transavam de porta aberta, e havia festas nos apartamentos às quais me convidavam porque sabiam que eu era brasileiro, pois já cantavam música brasileira, e era o tempo em que Caetano estava no exílio e compusera seu “London... London”, até hoje, para mim, o seu melhor disco:
“You don't know me
”Bet you'll never get to know me
“Laia ladaia sabadana ave maria
”Eu agradeço ao povo brasileiro
”Norte, centro, sul inteiro
”Onde reinou o baião”.
Mas havia grandes músicos americanos, no hotel e alguns hippies cantavam “Age Of Aquarius”:
When the moon is in the Seventh House
And Jupiter aligns with Mars
Then peace will guide the planets
And love will steer the stars
This is the downing of the Age of Aquarius
The Age of Aquarius
Aquarius! Aquarius!
Harmony and understanding
Sympathy and trust abounding
No more falsehoods or derisions
Golden living dreams of visions
Mystic crystal revelation
And the mind's true liberation
Aquarius! Aquarius!
Quase não se bebia água, mas vinho e champanhe e a maconha corria pelo corredor daquele hotel transformado nos “Paraísos artificiais” de Beaudelaire.
Sim, era Paris, se não um bordel, verdadeira festa.
Ora, andava-se de madrugada, nada de assalto e perigo à vista, à noite os concertos, nas praças, nas calçadas, em Les Halles. Na Sainte Chapelle. Os grandes nomes da literatura e da filosofia ainda estavam vivos e atuantes, e era possível cruzar com Foucault na calçada ou encontrar Barthes no Flore. Paris era assim.
Anos depois foi no Flore de Champagne Veuve Clicquot que tomei certa noite um belo porre junto de minha amiga, a escritora N. M., numa noite memorável e triunfal que avançou pela madrugada adentro, nós dois cantando soltos e livres pelas ruas de Paris. E quando voltamos para o hotel deu-se o seguinte e inusitado fato, que o jovem porteiro da noite me perguntou se ela era “a minha senhora”, e como eu lhe respondi que não, que era apenas uma boa amiga, ele me perguntou se eu “consentia” que ele tivesse como ela um encontro íntimo, e que eu lhe transmitisse semelhante proposta (que, por sinal, não foi aceita). No dia seguinte almoçávamos eu e ela num restaurante perto da Sorbonne quando o garçom, vendo que éramos brasileiros, nos disse que já servira ali ao grande escritor brasileiro “Amadô” que viera acompanhado de um outro escritor cujo nome ele esquecera mas que se tornara presidente do Brasil (Sarney).
Lembro-me de quando e u passava por Champs-Élysées vi uma numerosa concentração de motocicletas de um grupo de mulheres, vestidas de homem, com suas namoradas na garupa. E de que no meio do jardim des Tulleries havia um café, aonde eu sempre ia ler os jornais, lugar solitário e poético, mas cheio de malícia. E perto era o forte impacto da Praça da Concórdia, a meditar sobre o gigantismo das suas belas fontes, atravessando a ponte e sonhar, e viajar no sonho da sua vasta amplidão, na sua visão de tudo por todos os lados, a grandiosidade napoleônica apontando o céu com o Obelisco de Luxor, de 3.200 anos de idade, retirado do Templo Ramses II, em Tebas e oferecido pelo vice-rei do Egito e ali colocado, onde Luis 14 e Maria Antonieta foram guilhotinados.
E as passantes que me faziam ouvir o poema de Beaudelaire:
“A rua, em torno, era ensurdecedora vaia.
“Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
“Uma mulher passou, com sua mão vaidosa
“Erguendo e balançando a barra alva da saia;
“Pernas de estátua, era fidalga, ágil e fina.
“Eu bebia, como um basbaque extravagante,
“No tempestuoso céu do seu olhar distante,
“A doçura que encanta e o prazer que assassina.
“Brilho... e a noite depois! — Fugitiva beldade
“De um olhar que me fez nascer segunda vez,
“Não mais te hei de rever senão na eternidade?
“Longe daqui! tarde demais! nunca talvez!
“Pois não sabes de mim, não sei que fim levaste,
“Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste!”
Mas tudo passou. E no ano passado tive uma surpresa, eu vinha caminhando pela Avenida De La Motte-Picquet, quando meus olhos deram com uma loja de antiguidades chamada “Paris-Manaus”, no número 52 daquela rua, perto do Campo de Marte, em “Le Village Suisse”, e não resisti e entrei.
— Boa tarde, disse para a senhora atrás do balcão. Gostaria de saber por que sua loja se chama “Paris-Manaus”?
Ela respondeu:
— Oh, meu marido gosta muito de Manaus, para onde vai quase todo ano, disse.
Eu desconfio que o marido deve ter comprado aquelas peças em Manaus. Por bom preço. Pedi-lhe o cartão. Veio o site:
http://www.antiquiteparismanaus.fr/index.htm
Seus restaurantes exóticos tem Paris. No Boulevard de Grenelle, entre os metrôs Motte-Picquet e Duplex, onde fica aquela feira dominical que adoro e vende de tudo, como discos e DVDS por preço irrisório, e onde encontrei um raro CD de Nelson Freire jovem, existe um restaurante chamado “Le roi du cuscuz”, libanês, que faz aquelas comidas gordurosas e excelentes, cheias do bom colesterol o apetitoso cuscuz que é um prato originado do Maghreb, região do Norte de África. A música é daquelas cantoras árabes que rebolam chorosas, gozosas, lânguidas, gordas e sensuais. A decoração faz parecer que estamos dentro de uma tenda marroquina, bom preço, barato, delícia.
Pensei que Paris tivesse mudado.
Mas recentemente fiquei num hotel na rue de Lourmel de gente árabe, onde paguei a metade do preço porque não havia hóspedes e minha estada era de quinze dias.
Pois ali no meio da noite estava acordado assistindo aos péssimos programas de auditório da TV francesa quando me chamou atenção o mau cheiro que vinha do lixo esquecido no banheiro. Eram cascas de banana que apodreciam no forte calor que eu mesmo, como bom amazonense, impusera ao quarto, porque lá fora estava 3 graus.
Resolvi colocar as cascas dentro de um saco plástico, e o saco no parapeito externo de uma pequena janela que no banheiro havia, janela que eu gostava de abrir à noite de onde podia contemplar, e bem de perto, luminosa, faiscante, iluminada de intensas estrelas, a magnífica Torre Eiffel que já dava seus primeiros ensaios de como seria no Reveillon: brilhos de grandes cristais e diamantes azulados, luzes que cortavam o céu como uma coleção de jóias luminosas.
Quando abri a janela deparei com um homem de certa de sessenta anos, no hotel contíguo, que vestia o casaco sobre uma camisa branca, já posta a gravata. Tinha os cabelos grisalhos e falava, de pé, para uma bela mulher jovem e inteiramente nua, deitada na cama, de costas para mim.
Ele devia ser casado. Ter filhos e netos. Ela, a namorada amante. Mas ele tinha idade para ser seu pai.
Estava de flanco a jovem sobre o branco lençol, despida e sensual, estendida, relaxada na imensa cama de casal, o colchão iluminado por aquela luz subsidiária que vinha da extremidade do cômodo. Os cabelos em desalinho, pintado em tonalidades douradas. Eu via suas pernas abertas e dobradas em “V”, os pés que se juntavam no leito, como uma provocação, pedindo bis, exibindo o sexo que eu não via porque estava entre as bem torneadas pernas, de costas para mim. Mas eu via as nádegas bem fornidas, a curva da anca, a cintura estreita e o belo braço estendido.
A iluminação claro-escuro perfeita para a imagem erótica, acentuava o exotismo, o mis-en-scene, o décor, a realidade inesperada, o memento sexual.
Num perfeito equilíbrio a janela enquadrava os dois: ele de pé, à esquerda; ela deitada, abaixo, à direita. Os elementos se ajustavam. Ele, quase idoso. Ela, bem jovem. Ele voltava-se para ela. Ela se dirigia para ele, mas não falava, como se lhe escutasse.
Mas não era comum a cena, nem familiar ou conjugal. Aquilo respirava algo mitológico muito antigo, vinha dos deuses profanos, do profundo de gozo da arte clássica ou neoclássica saída de algum estranho museu.
Ela acabara de ter tido uma funda noite de amor, porque tudo nela parecia tencionado, ainda tinha a respiração ofegante e trêmula das grandes emoções, evocando as cortesãs do Século Dezenove dos quadros dos palácios devassos dos aristocratas machos ou dos casanovas sádicos de desconhecidos gozos.
Vi que o homem se despedia, que partia.
Mas fechei logo a janela e logo saí dali, pois não podia ficar bisbilhotando o vizinho, ainda que estivesse sem sono. Por isso voltei para a cama e dormi.
No dia seguinte acordei, fiz a barba, tomei banho, me vesti.
Quando já ia sair, lembrei-me das cascas de banana na sacada e da cena da madrugada anterior. Resolvi dar uma olhada naquela janela indiscreta e retirar o lixo.
Abri a janela. Com cuidado. Foi quando vi que eu estava errado, pois quem dormia ainda ali e agora estava de frente para mim não era uma mulher. Mas um rapaz.
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