Raquel Naveira
Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.
Coluna semanal de Raquel Naveira
– Nº 47, 06/11/2015 –
CAMISAS
Passo camisas muito bem. Não dispenso um pouco de goma nos punhos e no colarinho entretelado. Sinto prazer em ver o tecido alisar-se, fumegante de vapor. As azuis são minhas preferidas. Podem ser de algodão, seda ou linho fino. Simples ou luxuosas funcionam como uma segunda pele. Partilho da sua intimidade, do momento em que ele abotoará o peito e eu o ajudarei a firmar o nó da gravata. Afinal, são as camisas do meu marido.
É justamente esse o título do conto que abre o livro da escritora Nélida Piñon: A Camisa do Marido. A trágica história de Elisa organizando os pertences deixados por Pedro, o marido assassinado. Enquanto se posiciona, dobrando as mangas, ela rumina dentro de si a suspeita, o nome do algoz. Decidiu que a camisa do marido o substituiria no leito de um casamento de trinta anos. Os trapos sujos de sangue, destroçados pelo punhal, seriam um símbolo daquele que a deixara não por vontade própria, pois jurara permanecer com ela até a morte. Os filhos, Tiago, Lucas e Mateus rondam a mãe viúva com seus pensamentos, carências e emoções. Com seus monólogos inaudíveis. Eles são altos, ela pequena, mas pronta para enfrentar bichos, homens e perigos. Traz a camisa ensanguentada para perto do corpo. Ela e o marido se excluíram do mundo para se possuir, eram suficientes um para o outro. Esqueciam-se dos filhos. Egoísta e vingativa, Elisa contrata um matador profissional para dar cabo do assassino do marido, um criminoso ciumento que, segundo ela, julgou que Pedro tivera um caso com sua mulher. Uma infâmia, uma ofensa. Tremeu inteira, enquanto engolia a cápsula de veneno retirada do bolso da saia. Tiago, filho revoltado, diante da mãe morta, recolhe para si a camisa do pai e se tranca no quarto. Na casa. No coração. Numa luta sem tréguas com os irmãos. Que almas atormentadas. Nélida é cruel, poderosa narradora, mistura morbidez e lirismo em seus textos tensos. Sou sua ávida leitora.
Dizia antigo ditado que “O homem feliz não tem camisa”. Nada reivindica, sua felicidade não depende das circunstâncias e dos bens materiais. Ele é leve como o ar, sem nenhum peso, nenhum fardo, nenhum jugo, nenhum vínculo. A lenda oriental conta que um califa doente estava deitado sobre almofadas acetinadas. Os médicos e magos concordaram em que apenas uma coisa poderia conceder cura e salvação ao califa: recostar a cabeça na camisa de um homem feliz. Mensageiros buscaram em vão: as pessoas estavam cheias de tristezas e preocupações, reclamando e murmurando, ora contra o passado, contra o presente, ora descrentes do futuro. Os corações ingratos, queixosos, insatisfeitos. Finalmente, encontraram um pastor que cantava observando as ovelhas. Perguntaram-lhe se ele era feliz. Ele respondeu que sim. Pediram então que desse a sua camisa para levar ao califa. Ele ponderou que não tinha camisa. Contaram então essa história ao califa. Ele se conscientizou, arrependeu-se, distribuiu seus bens entre os pobres e ficou curado.
Quando pequena, andava pela rua do comércio, a rua 14, com meus avós, olhando as lojas e me chamava a atenção a Camisaria Kaleche, instalada num corredor iluminado. À frente, o libanês Gabriel nos convidava insistentemente: “ – Entrem, amigos, vejam nossas camisas. São coloridas, listradas, estampas delicadas, bom corte, talhe perfeito, macias. Entrem, entrem. Quem não precisa de camisa, não é mesmo? Nem era verdade aquela lenda de que o homem feliz não usava camisa. Usava sim, camisão de cânhamo, de estopa, de camponês trabalhador, mas usava. A camisa é a elegância, a dignidade. Entrem, entrem”. E quando sentíamos o cheiro do café servido por sua irmã Leila, moça formosa, com sotaque francês, entrávamos, alegres fregueses debruçados sobre o balcão.
Passo camisas com esmero. O meu marido fica sempre bonito com esta azul clara.
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