Coluna de Rogel Samuel 
Rogel Samuel é Doutor em Letras e Professor aposentado da Pós da UFRJ. poeta, romancista, cronista, webjornalista.
Site pessoal: http://www.geocities.com/rogelsamuel

Nº 100 - 2ª quinzena janeiro
(próxima coluna: 10/2/2007)



Blocos Online parabeniza Rogel Samuel e a sua coluna,
que hoje passa a ser centenária.


CEM VEZES BLOCOS

O que esta coluna faz hoje o seu centésimo aniversário. Agradeço a você, leitora e leitor. Agradeço a você, Leila Miccolis, sua acolhida.

Foram cem crônicas. Passou o tempo. O tempo brinca. Dança veloz. Diz o povo:

O tempo
O tempo perguntou ao tempo
Quanto tempo o tempo tem
O tempo respondeu ao tempo
Que o tempo tem tanto tempo
Quanto tempo o tempo tem

O padrinho foi Ricardo Alfaia. A primeira coluna foi aqui em 10 de dezembro de 2002. Sobre a posse de Lula.

Certa vez, um nobre inglês mandou imprimir no convite de aniversário que tinha “a honra de convidar para a festa de seu primeiro centenário...” Humor inglês, naturalmente.

Há escritores que escreveram cem ou mais livros. Meu amigo Assis Brasil escreveu. Creio que está no 113º, que se chama “Herberto Sales: Regionalismo e utopia”, publicado pela Academia Brasileira de Letras.

Austregésilo de Athayde centenas de artigos no seu “Jornal do comércio” publicou. Eu o conheci, na Academia. Ele colaborou com um texto na nossa revista “Aió”.

Lya Luft traduziu para o português mais de cem livros. Eu a visitei no seu apartamento o lado da PUC, há muitos anos. Não estou me comparando! Ana Maria Machado é autora de mais de cem livros.

Agradeço a sua presença, leitora, leitor.

Escrever não é só sempre arte, mas necessidade. Como o alcoólatra necessita beber, o escritor é necessita escrever. Diariamente. Alguns escreveram até a morte. Outros escreveram para si mesmos, por exemplo, um diário. Josué Montello escreveu vários grossos volumes de diário: “Diário da manhã”, “Diário da tarde”, “Diário do entardecer” etc. Lúcio Cardoso escreveu. O escritor gosta de conversar, contar estórias. Está “escrevendo”, enquanto fala. Márcio Sousa é assim. Está contando. É o narrador quem fala, não é ele. Certa vez, fiquei várias horas com Márcio, na “bienal do livro” em São Paulo, na barraca da editora Marco Zero. Foi uma delícia. Agripa Vasconcellos escreveu numerosos romances, muito lidos. Alguns “encomendados” pelo meu amigo Pedro Paulo Moreira, dono da Itatiaia. Eduardo Frieiro escreveu muitíssimo. E a maioria de seu gigantesco diário ainda está inédito, manuscritos que conheci, no escritório de Pedro Paulo, em Belo Horizonte. É uma gigantesca coleção de cadernos! Frieiro escreveu até sobre culinária mineira, “Feijão, Angu e Couve” (Itatiaia). Tem gente que pensa que o escritor quer “aparecer”, ficar famoso. Não é bem assim, mesmo porque são poucos os famosos. Não é pra quem quer. Fama é loteria. Às vezes passa, vem o esquecimento... Você já ouviu falar em Carmem Dolores? Era famosíssima. Mas o grande escritor escreve muito, escreve sempre. Rachel de Queiroz escreveu até a idade mais avançada, e sempre lúcida, e sempre muito boa escritora. Machado escreveu a vida toda. Mergulhou sua vida nos livros e na escrita, até o seu último dia. Antes de morrer, ele chamou o vizinho e pediu que pegasse uma caixa na estante e a queimasse no quintal. O vizinho atendeu ao pedido! Eram as cartas de amor que ele trocara com Carolina. Aquela pequena fogueira no quintal do Cosme Velho destruiu o que poderia ter sido um dos livros mais importantes da língua portuguesa.

É claro que há os que escreveram pouco, um só livro, ou um soneto. Alessandro Manzoni escreveu e tão somente é conhecido por um romance: “I promessi sposi”. Mas o escritor é aquele que tem vontade de escrever. Virgínia Woolf escrevia diariamente, lia um livro por dia. E disse: “escrevo como se estivesse numa estação rodoviária, à espera de um trem”. Alceu Amoroso Lima escrevia uma carta por dia para a filha, que era freira reclusa. Mário de Andrade escreveu livros e cartas, numerosas.

Alguns escrevem com facilidade. Era assim Antonio Carlos Villaça. Um poeta amigo me conta que foi até ao hotel em Santa Teresa onde ele morava (e onde o visitei várias vezes), e pediu um prefácio. Villaça folheou os originais, pôs o papel na máquina e enquanto falava produziu o texto limpo, lindo, sem necessidade de nenhuma emenda, nenhuma rasura. Era assim Josué Montello. Num dos seus diários conta Montello que, como ia viajar, deixou numerosas crônicas já escritas para a sua coluna (ele cita o impressionante número, não me lembro, dezenas). Genesino Braga o visitou e pediu-lhe o prefácio para o seu belo “Fastígio e sensibilidade do Amazonas de ontem” (que ajudei na revisão tipográfica da 1ª edição). Montello produziu o texto na hora, belíssimo. Rui Barbosa escreveu uma biblioteca inteira, que hoje quase ninguém lê.

Não é uma profissão bem remunerada, a de escritor. Hoje há exceções, é claro. Júlio Ribeiro, o nosso Emile Zola, autor de “A carne”, morreu na penúria, aos 45 anos. Quando estava doente, os amigos ensaiaram uma subscrição pela imprensa para socorrê-lo. Ele recusou, agressivo, escrevendo para os jornais: “Eu não peço nada a ninguém e suponho que é o que a sociedade exige para que eu possa dizer que não lhe sou pesado”. Oito dias depois faleceu. Escreveu gramática. Era materialista. Em contraste com isso, o sucesso internacional de Paulo Coelho. Nas livrarias do mundo todo agora existe a seção Paulo Coelho.

Fico feliz de ter chegado aos 100 Blocos. Gosto de comemorações, de aniversários, porque sou amazonense. No interior do Amazonas, na beira dos rios, festa de aniversário ou casamento durava vários dias, as pessoas dormiam na casa da noiva! Em Manaus os aniversários eram comemorados em grande estilo, com grande festa, mesa farta de doces, muita alegria. Como as casas mesmo pobres tinham quintal, havia vários ambientes: na sala os mais velhos, no quintal as crianças, nos desvãos sombrios do jardim os adolescentes namorados. E mais: na saída era comum levar um prato de doces para casa. O momento culminante era o cortar do bolo de aniversário, com muita cantoria e palmas. Amazonense é festeiro. Minha amiga X., escritora que mora em Manaus, gostava de fazer grandes peixadas em sua casa todos os sábados. Para lá iam todos, e passavam o dia. Outro grupo de amigos e com suas esposas durante muitos anos se reunia semanalmente num bar, às sextas, onde se falava de política, onde se comia e bebia até a madrugada. Eu participava disso, quando estava na cidade. E havia as festas populares, São João, festa de igreja, boi. Para tudo, uma festa. A festa é uma aspiração à dissolução do objeto sacrificial que explode. Na festa se dissolvem a tensões que levam à guerra. A festa é uma fusão da vida humana no grupo, uma eliminação da solidão, dos medos dos deuses, da morte. A festa é uma conciliação amigável, há no seu seio algo de angústia, de eliminação de necessidades incompatíveis. A individuação, na sociedade primitiva, era fundada na fusão provocada pela festa. Neste sentido, a guerra participava da mesma natureza que tinha a festa. A guerra produzia a unidade do grupo, com a característica de dirigir e eliminar a violência destrutiva para fora. A festa provocava a dissolução da violência “para dentro”, num retorno à intimidade perdida. A família, como concepção burguesa de organização da sociedade em núcleos familiares, mantinha viva a sua “biologia” presa à propriedade privada. E era na festa e no casamento que as famílias dissolviam o potencial agressivo que havia entre a competição dos núcleos familiares, o que poderia por em risco a coesão e o equilíbrio social. Todo clã considerava o seu vizinho como rival. Toda “família” consideraria seu vizinho um inimigo em potencial se não fosse a festa. O Estado moderno, dissolvendo os núcleos familiares, criou um problema insolúvel até hoje: a violência urbana. Toda gang considera a outra seu inimigo e rival. Toda torcida de futebol considera a outra como inimiga, podendo o conflito entre torcidas levar à guerra e à morte. A festa arcaica, unindo os contrários, dissolvia a rivalidade na reunião festiva. O contrário da festa era a guerra.

Mas acho que é um milagre a gente ainda estar vivo. E por isso vamos festejar. Como escreveu Manuel Bandeira, “a vida é um milagre”. E milagre, disse o cego Aderaldo:

Só nos falta vê agora
Dá carrapato em farinha
Cobra com bicho-de-pé
Foice metida em bainha
Caçote criá bigode
Tarrafa feita sem linha

Muito breve há de se vê
Pisá-se vento em pilão
Botá freio em caranguejo
Fazê de gelo carvão
Carregá água em balaio
Burro subi em balão

Agradeço a meus leitores, hoje. Até com uma grande festa. Agradeço a leitura, a existência escrita.

Agradeço a leitura, a leitora, o leitor, a hospedagem de Blocos Online e a Leila Miccolis. Sei como é trabalhosa a manutenção de um portal desta natureza e de tamanho porte. Mas como é tão doce a sua gentileza!

Vale!

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"O AMANTE DAS AMAZONAS", 2ª EDIÇÃO, EDITORA ITATIAIA: este romance, baseado em fatos reais, históricos, conta a saga do ciclo da borracha, do apogeu e decadência do vasto império amazônico na maior floresta do mundo. Cerca de cem volumes da época foram lidos e mais de dez anos de trabalho necessários para escrever esta obra. CLIQUE AQUI PARA LER ONDE VOCÊ PODE ENCONTRAR O ROMANCE DE ROGEL SAMUEL.

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