Raquel Naveira

Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.       

Coluna semanal de Raquel Naveira
Nº 49, 19/11/2015

FORMIGAS

            Formigas sempre me intrigaram. Ficava horas de cócoras observando a correição a caminho do formigueiro, como se eu fosse uma espécie de cientista estudando a colônia, procurando descrever e explicar esse tipo avançado de sociedade. Os formigueiros, alguns em forma de cone, outros subterrâneos, eram autênticas obras de engenharia, com túneis e câmaras, por onde desfilavam operárias carregando folhas, flores e ramos maiores e mais pesados do que elas mesmas. Que trabalho incrível o das jardineiras cortadoras. Que voos nupciais nos ares, seguidos de uma chuva de asas decepadas no chão. Quanto trabalho e apego ao seu mundo microscópico.

            Há um provérbio que aconselha os preguiçosos a verem as formigas e imitá-las. É sinal de sabedoria reunir provisões durante a colheita, reservar alimentação abundante e variada para enfrentar a ameaça do inverno. Talvez essa passagem seja uma das influências da famosa fábula “A Cigarra e a Formiga” atribuída a Esopo e depois revisitada por Jean de La Fontaine. Conta a história de uma cigarra que cantava durante o verão, enquanto a formiga trabalhava acumulando mantimentos em seu formigueiro. No inverno, pobre e desamparada, a cigarra foi pedir abrigo à formiga. Esta perguntou o que ela tinha feito todo o verão: “– Cantei”, respondeu a cigarra. “– Então, agora dance”, disse a formiga, trancando a porta e deixando-a na neve e no frio. Formiga de coração duro. Leio sempre esse drama com um gemido na garganta. Sou cigarra, poeta de inspiração intermitente. Vivo cantando. Preciso de luz. Solto estrídulos ao calor do sol. Tem piedade de mim, Dona Formiga.

            O fascínio pelas formigas foi tema para vários autores. Ignácio Loyola Brandão no seu conto “O mistério da formiga matutina” exerce sua imaginação. O protagonista do conto considera viável o diálogo com esse inseto. Conversa com a formiga levando em conta as supostas anuências e negativas às suas perguntas. A formiga estava ali, perto da jarra de suco de laranja. Parecia triste e abatida. De onde teria vindo? Teria subido pelo elevador? Quanto tempo restaria a ela? Comovente a disponibilidade do autor/personagem de ouvir a si mesmo e ao outro. De conhecer-se a partir da investigação sobre um ser tão minúsculo, quase invisível, mas cheio de presença.

            No mesmo clima de realismo mágico, o conto “As formigas”, de Lygia Fagundes Telles, brinca com o jogo de sonho e realidade, curiosidade e medo, conteúdo e continente. Duas amigas são primas e universitárias, uma estuda Direito, a narradora e a outra Medicina. Mudam-se para uma pensão sinistra, decadente e assustadora. As garotas descobrem que o antigo morador deixou lá um caixote de ossos guardados. A estudante de Medicina se interessa e constata que o esqueleto raríssimo pertencia a um anão. Durante a noite, o quarto é tomado por um forte cheiro de bolor. Formigas invadem o aposento e marcham na direção do caixote de ossos. A estudante de Direito sonha com um anão olhando para ela. A outra investiga a caixa e percebe que os ossos estão sendo mexidos e colados, se reconstituindo com lógica. Faltava apenas o encaixe de alguns ossos para que o esqueleto ficasse formado. As moças fogem aflitas do sobrado de janelas ovaladas “iguais dois olhos tristes”. Interessante como a autora personifica a formiga nesta frase: “Uma formiguinha desgarrada (a mesma daquela noite?) sacudia a cabeça entre as mãos.”

            Formigas ainda me intrigam. Energia circulando nas entranhas da terra. Eu, cientista e criança, ora desbaratava a trilha, ora esmagava algumas com os pés, sentindo um estranho poder de vida e morte, de colocação de ordem no caos. Hoje, sou uma formiga, vigiada por Deus e pelo Diabo, no meio de um campo varrido por tempestades.

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