Coluna de Rogel Samuel 
Rogel Samuel é Doutor em Letras e Professor aposentado da Pós da UFRJ. poeta, romancista, cronista, webjornalista.
Site pessoal: http://www.geocities.com/rogelsamuel

Nº 103 - 1ª quinzena março
(próxima coluna: 25/03)

MADAME SATÃ

Depois de tanto ouvir falar em bandidos, lembro que conheci Madame Satã. Na Ilha Grande.

Naquele tempo de ditadura militar existia ainda o presídio e era muito difícil entrar naquela ilha. Mas eu tinha um amigo que era oficial músico da policia militar, e através dele fomos acampar ali. Eu, ele, duas amigas.

Éramos jovens. A ilha, deslumbrantemente bela, selvagem. Aquelas águas claras, perigosas, amplas. Por ali passa um vento antigo que nos fala de Ulisses, como no início dos "Cantos" de Ezra Pound:

E pois com a nau no mar,
Assestamos a quilha contra as vagas
E frente ao mar divino içamos vela
No mastro sobre aquela nave escura,
Levamos as ovelhas a bordo e
Nossos corpos também no pranto aflito,
E ventos vindos pela popa nos
Impeliam adiante, velas cheias,
Por artifício de Circe,
A deusa benecomata.

Fomos. Lancha do presídio, cercados de policiais, presidiários e moradores da Vila do Abraão. Uma viagem e tanto, sobre ondas ameaçadoras.

Assim no barco assentados
Cana do leme sacudida em vento
Então com vela tensa, pelo mar
Fomos até o término do dia.

Como era época militar, fomos fiscalizados e fichados, mas mero procedimento de rotina. Já éramos professores.

Na ilha, armamos nossa barraca numa praia deserta, lugar indevido, no meio da noite senti os pés molhados e percebemos, em pânico de alegria, que a maré havia subido e entrava barraca adentro. Pois no escuro fomos levados a nos mudar para a floresta, carregando tudo de qualquer maneira...

Sangue escuro escoou dentro do fosso,
Almas vindas do Erebus, mortos cadavéricos,
De noivas, jovens, velhos, que muito penaram;
Úmidas almas de recentes lágrimas,
Meigas moças, muitos homens
Esfolados por lanças cor de bronze,
Desperdício de guerra, e com armas em sangue
Eles em turba em torno de mim, a gritar,
Pálido, reclamei-lhes por mais bestas;

Ninguém mais dormiu. Ficamos numa pedra, olhando as mais altas estrelas, que apareciam a refletir-se na superfície do nosso mar escuro. Ninguém dormiu, e sonhávamos com nossa vida futura, nossa juventude, que pretendíamos eterna, e namoramos ali enquanto a noite derramava e arrastava o seu manto de grandes diamantes sobre a face daquele mundo ainda puro, ainda adormecido, ainda por descobrir.

No dia seguinte fomos ao Abraão e lá passava ele. Madame Satã.

Era um homem velho negro ainda forte, ainda sólido, porém meio torto, que atravessava a rua.

- Olha a madame satã, disse alguém para nós.

E ficamos olhando aquela figura lendária das noites da Lapa Carioca.

Algum tempo depois li “As memórias de Madame Satã”, que o Pasquim publicou na década de 70 e depois vi o filme de Karim Aïnouz, com a excelente performance de Lázaro Ramos.

Há lendas que estão no texto e que o filme não conta, como por exemplo que Madame Satã pôs a correr um grupo de marinheiros que tentavam agredi-la, ou quando entrou na delegacia para agredir um delegado. Outra coisa: João Francisco dos Santos na sua entrevista ao Pasquim nunca se referiu à sua sexualidade.

Mas tudo o que aconteceu mostra que a época era outra. Fosse hoje, o Satã teria sido morto logo nos primeiros dias de suas complicações. Naquela época, a malandragem era romântica, folclórica. Conheci um grande advogado, já falecido, de ilustríssima família carioca, pai de amiga minha, que era amigo de Madame Satã e com ele bebia na Lapa.

Mas Madame Satã pode ser considerado um herói: é o precursor da luta dos homossexuais, e assim devia ser respeitado, como o Zumbi, para os negros. Negro, pobre e homossexual, Madame Satã foi um herói dos excluídos.

Ele se chamava João Francisco dos Santos, era pernambucano (Glória do Goitá, 1900 - Rio de Janeiro, 1976) e era “transformista”.

Há uma cena no filme, que não foi utilizada, em que um delegado pergunta: "O senhor é o que?". Ele responde: "sou um artista". E o delegado: "desde quando ... é arte?".

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