Raquel Naveira

Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.       

Coluna semanal de Raquel Naveira
Nº 50, 03/12/2015

PEDRAS

                Que sensação de plenitude quando eu sentava sobre aquela rocha no meio do rio. À minha volta, as espumas das corredeiras, a beleza verde da mata. E, de repente, eu começava a retirar do fundo raso e calcário, pedras lisas, seixos amarelados. Apalpava ora uma face, ora outra, secava a umidade na minha pele, adivinhava o fogo nas entranhas daquela massa dura e quente. A alma de cada seixo era frágil. Eu os amontoava e unia em pilhas e logo viravam pirâmides, altares, marcos de recordações.

                Esta pedra, eu pensava, parece um rosto, uma santa com um véu. Esta outra, um pão fumegante. Quando Cristo foi conduzido pelo Espírito ao deserto, o diabo sugeriu que ele transformasse as pedras em pães. Vontade de morder essa pedra, esse pão da vida. Com esta aqui, meio arredondada, eu poderia atirar no gigante Golias como fez Davi. Subiria o monte apoiada num cajado, o peito recoberto por uma couraça de escamas de bronze. Escolheria cinco pedras lisas e as colocaria dentro do meu alforje de pastora. Com a atiradeira na mão, me aproximaria do gigante filisteu. A primeira pedra voaria nos ares e atingiria em cheio a sua testa. Ele viria abaixo, como uma torre rangendo. Ah! O mundo todo seria alterado se eu vencesse um desafio desses. Preciso ser forte, mesmo fraca. Num gesto louco, eu derrubava as pedras com fúria no leito do rio. Elas rolavam em movimentos de descida, como se buscassem um despenhadeiro.

                Assim como Florbela Espanca, a poetisa portuguesa, eu desejava ser uma pedra, uma pedra do caminho, rude e forte. E ser também o rio, o sol, uma árvore. Desejo vão, as pedras são pisadas por todos. Eu mesma poderia agora pisoteá-las como uma ninfa, uma tágide, se esse rio fosse o Tejo.

                Aprendi muitas lições com aquelas pedras. João Cabral acreditava nisso: numa educação pela pedra. Aprende-se a frequentar a pedra, a captar sua voz inenfática, impessoal. Ouve-se a dicção da pedra inerte. Da pedra bruta. Resistência fria. Carnadura compacta. No sertão a pedra entranha na alma. É aridez humana e geográfica. É linguagem seca, concisa, despojada de sentimentalismo. É sentimento puro transformado em pedra. Em Arte e Dor.

                Noto uma pedra assentada no leito do rio. Desta vez, curvo-me com reverência. Há nela uma presença divina. É pedra provada, preciosa, pedaço brilhante de quartzo. Sabedoria pétrea pescada por meus dedos das fontes de águas límpidas, como se fosse um peixe.

                Sensação de plenitude quando eu sentava sobre aquela rocha no meio do rio. Era o princípio dentro de mim.

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