Raquel Naveira

Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.    

Coluna semanal de Raquel Naveira
Nº 54, 6/4/2016

NATUREZA-MORTA

                Coloco na fruteira de cristal vermelho algumas maçãs. Ficou lindo. Uma boa forma de saudar o outono, essa estação de transição, onde tudo de repente se decompõe e apodrece. Criei uma cena de estúdio, que caberia bem num poema, numa fotografia, num quadro de natureza-morta.

                A natureza-morta é um gênero das artes visuais, pintura em que se representam coisas ou seres inanimados. Arranjos de objetos como frutas, louças, flores, garrafas, vasos, potes, peixes, moluscos, espelhos, velas. Um gênero que surgiu na Antiguidade nos afrescos e mosaicos e que se estabeleceu com os pintores holandeses do século XVIII. Espécie de ícone da vida privada, a natureza-morta aparece como um espaço privilegiado para a reflexão sobre as complexas relações entre arte e realidade. Permite o estudo de formas, composições, texturas. Retirado do contexto habitual, os seres passam a figurar num conjunto diverso, imantados pela magia de uma forte carga emotiva. Há tanta beleza em minha fruteira de cristal vermelho! Suspiro fundo.

                Lembrei-me do quadro “As Vaidades da Vida Humana”, do holandês Steenwyck (1612-após 1655), um exemplo de natureza-morta conhecida como “Vanitas” que significa “vaidade” em latim. A tela é cheia de enigmas, significados ocultos, referências à morte e à fugacidade da vida. Uma espécie de sermão ilustrativo dos ensinamentos do Livro do Eclesiastes, no Velho Testamento, que afirma: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade”. Sobre uma mesa de tampo de madeira ficam expostos vários objetos: uma concha, símbolo da riqueza mundana; um relógio mostrando que nosso tempo na terra é limitado; uma espada indicando que a força das armas não pode derrotar a morte; uma flauta, símbolo fálico, representando os prazeres sensuais e eróticos; uma lâmpada apagada (“Meu coração é uma lâmpada que se apagou/Mas que ainda está quente”, escreveu Fernando Pessoa), de onde sai um fino fio de fumaça provando a fragilidade da nossa existência; a charamela, espécie de oboé, instrumento musical que acompanha o namoro, o encontro amoroso; um jarro bojudo aludindo ao vinho e à bebida; livros abertos que remetem à aquisição de conhecimento e erudição, onde habita também o perigo, pois o muito saber leva ao muito sofrer, ao aumento da dor. E no meio dos objetos todos, sobre um tecido negro, um crânio sorridente, apontando que todos morreremos um dia, que a morte é mesmo o fim comum e inevitável.

                Mas foi o pintor Cézanne (1839-1906) que deu uma nova posição ao gênero da natureza-morta, explorado depois por artistas como Picasso, Van Gogh e Matisse. Seu trabalho influenciou o direcionamento da arte moderna. Os humildes objetos de suas naturezas-mortas são observados com dedicada paixão: imagens de maçãs, cebolas, peras, pêssegos, estátuas de gesso retorcidas.

                Ninguém pintou tantas e tão belas maçãs como Cézanne. Maçãs pobres e poéticas, obsessivas. Há nelas um poder de sedução difícil de explicar. Os gregos acreditavam que a maçã fora criada pelo deus do vinho, Dionísio, como presente para Afrodite, deusa do amor. Quando Páris foi chamado a julgar quem era a mais bela das três deusas, Hera, Atena ou Afrodite, ele ofereceu uma maçã a Afrodite, para grande desprazer das outras duas. E a maçã que Eva deu a Adão, da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, foi a causa da expulsão de ambos do Éden.

                Creio no diálogo entre Poesia e Artes Plásticas. Poesias que parecem pinturas. A pintura é poesia muda. A poesia é imagem que fala. O poeta Manuel Bandeira descreveu a maçã como um “seio murcho”, “um ventre de cujo umbigo pende o cordão placentário”, “vermelha como o amor divino”, com pequenas sementes onde “palpita a vida prodigiosa”. E finaliza: “E quedas tão simples/ Ao lado de um talher/ Num quarto pobre de hotel”. Que poema! Um verdadeiro quadro de Cézanne. Quanta “humildade, paixão e morte”, como diria o mestre Davi Arrigucci Jr, que escreveu “Ensaio sobre Maçã” a respeito desse poema. A maçã no branco do papel. A maçã como objeto de imitação da natureza. A maçã como expressão de um sujeito lírico. A maçã ética, valor tão alto e sublime. A maçã política, democrática, do dia a dia dos pobres e desvalidos. A maçã lição de vida e simplicidade.

                Com essa fruteira de cristal vermelho, onde dispus algumas maçãs, saúdo o outono da minha vida.

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