Raquel Naveira

Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.    

Coluna semanal de Raquel Naveira
Nº 57, 22/6/2016

SAPATOS VERMELHOS

                Vesti-me toda de preto e, de repente, tive uma ideia: calçar meus sapatos vermelhos. Sapatos lustrosos, que brilham como maçãs polidas, corações bombando sangue.

                Lembrei-me daquele conto de fadas de Hans Christian Andersen em que a pobre órfã trocou os seus sapatos vermelhos de trapos por um par de sapatos carmim. Seus pés ganharam vida própria, não paravam de dançar. Ela perdeu o controle de si mesma. Saiu rodopiando pelo pátio da igreja, pelos canteiros, pelos campos, penetrou na floresta soturna e sombria. Na chuva, no sol, na neve, ela seguia dançando. Até que o carrasco amputou-lhe os pés e ela nunca mais ansiou por sapatos vermelhos.

                Foi o que aconteceu comigo. A fome de minha alma era tanta que saí dançando pelo mundo. Havia vibração no meu sonho. Eu estava disposta a sacrifícios; a desenvolver meus dons e talentos exclusivos; a criar filhos no meu ventre e gerar poemas; a ser desafiada para lutas e jogos verbais. Ardi, reprimi o raciocínio lógico, não respeitei limites financeiros, espirituais, físicos ou emocionais. Cada dia me sentia mais irreverente e curiosa. Não importava se roubava tempo de minha família, se impunha a todos os meus desejos, se meu apetite era voraz. Mãe, mística, escritora, eu me dedicava por inteiro às preces secretas, aos livros proibidos, às revoluções. Rodopiava no bosque com minha hemorragia interna. Meus estigmas purulentos.

                Aí veio o carrasco e cortou meus pés. Eu precisava recuperar a saúde, o bem-estar. Virei massa amorfa e alquebrada de tanto dançar. Os tempos foram difíceis. Saltei, corri, desapareci entre as árvores, pulei na garganta das feras. Fiz tudo o que tinha que ser feito até onde minha energia permitiu. Até onde a libido de minha paixão me deu coragem. A dor de ter os pés cortados foi imensa. Separei-me de meus sapatinhos vermelhos, minha idolatria e única esperança.

                Há armadilhas, arapucas, iscas escondidas nas trilhas da mata. Há que se saber quando parar. Mas nunca nos parece que conseguimos o suficiente para completar a carreira. Terá sido assim com mulheres artistas que tiveram um destino trágico como Judy Garland, Edith Piaf, Janis Joplin, Frida Kahlo ou com a poeta Sylvia Plath quando enfiou a cabeça num forno? Ouviram uma voz: “ – Basta. Chega. Seus dias foram contados”. Os sapatos vermelhos arrancados.

                É preciso voltar e se fortalecer. Receber um poder que vem do alto. Achegar-se às coisas simples. No fundo, penso que vou me recuperar, que meus pés vão crescer de novo, que vou voltar a correr, descobrir um caminho, virar mais páginas em branco. Terei o espanto de uma nova oportunidade. Receberei uma bênção incondicional. Uma unção de óleo perfumado. Costurarei pedaços de tecido vermelho sobre meus cotos suturados. Usarei linhas duplas, mas coserei com doçura de fiandeira que sou.

                Mais esperto foi o poeta Celso de Alencar, que reforçou seus pés e sua valentia ao desbravar São Paulo com meias vermelhas enfiadas em sapatos de couro fino. Para ele, a princípio, as meias vermelhas representaram ideais socialistas de justiça. Depois, a valorização do saber, do pensamento livre, da inventividade e da vida, como nos explica Lélia Maria Romero no seu ensaio sobre o poeta das meias vermelhas, compradas lá na Praça do Patriarca pelos integrantes de canto coral. À frente dos pés de Celso postava-se “um longo oceano rubro, a mais extensa plantação de papoulas cultivadas em terras áridas.” As meias vermelhas protegeram os pés do poeta rodando por essa selva de viadutos e avenidas.

                Vesti-me de preto. Tomei posse da terra com meus passos ainda claudicantes, com uma atitude responsável de renúncia. Cinderela às avessas, cujos sapatos encaixaram nos pés sem conflito ou angústia e depois se perderam. Não restou nenhum para prova irrefutável da minha consciência. Guardei em alguma prateleira os sapatos vermelhos como framboesas. Mas sempre me vem à ideia a tentação de calçá-los novamente.

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