COLUNA DE THATY  MARCONDES 
Na área empresarial, trabalhou na implantação de projetos de administração, captação e aplicação de recursos, e ainda em redação e revisão de textos técnicos. Nascida em Jundiaí, reside atualmente em Ponta Grossa/PR, onde exerce o cargo de Delegada na área Literária (Secretaria Municipal da Cultura).

1ª quinzena de novembro de 2008 - Coluna 119
(Próxima coluna: 18/11)

A BARATINHA DO VOVÔ

              Meus avós eram pessoas geniais. Geniais e geniosas, sem falsas aliterações. Minha avó, espanhola quieta, sábia, de palavras da língua pátria em baixo tom, quando estava brava; meu avô, guerreiro, turrão, teimoso, afeito a uma branquinha, que, quando em doses extra-abre-apetite, tinham conseqüências politicamente devastadoras. Um espanhol firme e provocador, em meio à populosa maioria de italianos da cidade.
               Uma das famílias de grande poder aquisitivo na cidade, em determinada época, quando o juízo dos filhos ainda se traduzia em se precaver de algumas traquinagens. Quando cresceram, o importante era manter o bom nome, o qual levou à liquidação as padarias e alguns negócios que tiveram ao longo da vida. Mas isso é outra história, ou muitas histórias.
              Ali pelos idos de 30 (não dá pra ser precisa, eu nasci muito tempo depois), meu avô era representante da Antártica na cidade e tinha uma pequena fábrica de gelo, o que lhe garantia uma ótima situação econômica. Durante o dia trabalhava duro e à noite se deleitava em aulas de francês com o professor Freitas, em casa. O velho Manuel Cubero, pai de cinco filhos, deu-se ao luxo de ter uma Baratinha Conversível Amarela. Quando se avistava o tal carrinho amarelo ouro (gritante!) pelas ruas, já se sabia que ali vinha o espanhol Manuel Cubero. Ocorre que meu avô tinha um sócio (não vou citar nomes, claro!), também casado. O tal sócio tinha uma namorada na periferia da cidade, e achou que impressionaria se a levasse a passear pelo campo com aquele lindo carro amarelo. Não se sabe se meu avô sabia dos motivos reais do pedido de empréstimo do carro, mas, porém, todavia, contudo... Emprestou. E já sabemos do poder da língua de Jundiaí. Ai, ai, ai... Não prestou. Logo chegou aos ouvidos da dona Maria de Las Dores ou Maria Dolores, numa daquelas tardes mornas de cadeiras e conversas na calçada, a notícia de que seu marido tinha saído da cidade em direção ao campo pra passear... Acompanhado! Nesse dia Maria Dolores transformou-se em Maria de todas as dores de tantas mulheres que se sabem, por línguas outras, traídas, e saiu gritando casa adentro, Ai, que jo lo mato!, Ai, que hoy lo mato!, os filhos recolhendo as cadeiras, as mulheres se entreolhando e também se recolhendo em suas casas, escondendo-se por trás das pesadas janelas de madeira, ouvidos atrás das cortinas, tricotando o assunto da tarde seguinte.
              Ainda balbuciando em espanhol, dona Maria maquinava mentalmente que atitude tomar. Mas, naquele estado de fúria, apesar de claros, os pensamentos eram raivosos e vingativos. Como atingir o marido de forma que lhe doesse tanto quanto a humilhação a que estava sendo submetida?
              No sobradão em reforma da Rua Dr. Torres Neves, o alarido continuava. A tal baratinha amarela impávida e inocentemente estacionada no pátio lateral aos fundos. Seo Manoel no trabalho. Não se sabe de onde apareceu uma lata de gasolina nas mãos de dona Maria. Perigo à vista. Alguns vizinhos, alertados pelos gritos anteriormente profanados pela mulher, observavam, comodamente sentados nos bancos da praça dr. Anastácio, como se fosse um concerto, ou melhor, uma opereta, ao vivo no coreto. Rapidamente o líquido permeou o carro todo. E lá ia dona Maria riscando o fósforo quando a platéia começou a gritar e um senhor mais brando e calmo do que ela correu em seu encalço pra impedi-la de seu intento. Os filhos, no andar de cima, observavam a cena, assustados, quando alguém gritou: Joga areia! Areia apaga o fogo! Nem tinha fogo, mas os cinco, no calor da confusão, desceram e obedeceram cegamente à voz de comando sabe-se lá de quem e começaram a jogar areia na Baratinha. Foi uma festa: a melhor brincadeira dos últimos tempos. E lá se foi o monte de areia da reforma, na brincadeira das crianças. E lá se foi a Baratinha do vovô.
              No dia seguinte o carro sumiu. E nunca mais se falou no assunto no sobradão. A paz voltou a reinar na família, que até passeou a pé, por algum tempo; aliás, pouco tempo, mas meu avô jamais comprou outro carro tão chamativo – acho que tão pouco emprestou carro algum pra mais ninguém.


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