Raquel Naveira

Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.    

Coluna de Raquel Naveira
Nº 59

PEDRAS PRECIOSAS

                  Quando criança, aos domingos à noite, andávamos pela rua 14 observando as lojas e as pessoas. Era o famoso footing. Parávamos em frente das joalherias antigas. Em bustos de marfim brilhavam os conjuntos de colares, brincos, pulseiras feitos de ouro, prata e pedras preciosas. O solitário de diamante fazia imaginar um pedido de casamento. As esmeraldas emitiam luzes verdes e perigosas. O colar de pérolas rolava como um molusco. Os rubis eram intensos, carvões acesos de paixão. As safiras, talismãs celestes, refletiam uma energia calma e azul. Os topázios amarelos luziam como os olhos dos gatos e das corujas. Obras humanas e divinas, pedras vivas que caminharam do opaco ao translúcido e faiscavam atrás do vidro, diante de nossos sentidos e de nossas almas.
                  O reino mineral é fascinante. A nova Jerusalém, visão apocalíptica do profeta João, é descrita como uma cidade de ouro, que tem muro de jaspe, fundamentos ornados de pedras preciosas como safira, esmeralda, topázio, ametista, com doze portas de pérolas. Uma cidade que não necessitará de sol, nem de lua, porque a glória de Deus a iluminará. Um universo perfeito.
                  Em outra revelação, Lúcifer, a princípio um anjo, um querubim formoso, vivia numa espécie de Éden mineral, coberto de diamantes, turquesas, ônix e esmeraldas. Havia tambores e pífaros engastados em seu corpo dourado e musical. Andava no meio das pedras. Quando o interior desse ser se corrompeu em orgulho e violência, ele foi lançado fora do monte de Deus para o centro da Terra, onde as pedras preciosas estilhaçadas se misturaram ao pó das jazidas ocultas.
                  É na carnadura da terra que as pedras cintilam. Os homens saem à sua procura, eternos caçadores de esmeraldas. Lembro-me de Minas Gerais, de sua topografia de picos altos; da formação de seu povo miscigenando índios, portugueses e negros na sanha da extração do ouro e das pedras; dos bandeirantes se embrenhando nas florestas; do surgimento da populosa Vila Rica; da Coroa Portuguesa controlando com rigor os impostos abusivos; da Inconfidência Mineira, com a elite intelectual conjecturando um plano de criar uma república independente. Mas quem colocou tudo isso em versos insuperáveis foi Cecília Meireles no seu épico Romanceiro da Inconfidência. A poeta expôs o drama das mil bateias rodando sobre os córregos escuros, de onde vinha o ouro para se tornar “pó, folha, barra, prestígio, poder, engenho”. O ouro alastrando sinistras realidades. Os escravos morrendo de febre e fome sobre a riqueza da terra. Os ladrões, os contrabandistas, as famílias disputando privilégios, o ódio, a cobiça, a inveja, as galerias desabando, sepultando homens, as intrigas, os fantasmas nas esquinas pedindo ouro e pedras preciosas, os punhos presos por algemas de ferro. Numa passagem, ela nos mostra o faustoso rei Dom João V vestido de veludo, seda, brocados com rubis lapidados. E também o alferes Tiradentes segurava com força na mão, no momento em que foi detido em seu quarto entre a parede e a cama, uma pedra crisólita fria, que tinha dentro um sol fechado. Talvez nem fosse uma crisólita, pois as pedras enganam, mas parecia um diamante bruto. A luz da pedra batia no rosto do mártir.
                  Tomás Antônio Gonzaga, poeta inconfidente, autor da obra Marília de Dirceu, escreveu no cárcere suas memórias. Confessou à sua musa Marília que ela não veria os cativos tirarem o cascalho dos rios caudalosos ou das serras minadas. Não veria separar da grossa areia os granetes de ouro. Estavam terminados para sempre o seu relacionamento amoroso, o noivado, o sonho de formar com ela um lar.
                  Na década de 80, tivemos uma corrida de ouro moderna: Serra Pelada, no Pará, o maior garimpo a céu aberto do mundo, de onde foram extraídas toneladas de ouro. Hoje, a cava é um lago misterioso, em que borbulham ainda ouro e metais pesados. O filme Serra Pelada, de Heitor Dhalia, é sobre a ganância, a crueldade. É também sobre amizade e valores que nunca deveriam ser rompidos.
                  Olhávamos as joias nas vitrines das lojas do meu passado. Não havia guardas, seguranças, câmeras, vigias armados. Havia apenas devaneios, fantasias de príncipes, princesas, odaliscas e sultões. Uma vontade no peito de apalpar aquelas pedras e sentir, ao mesmo tempo, a umidade e o fogo de suas entranhas.

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