Coluna de 23/5
(próxima coluna: 9/6)
Onça Rejeitada
Avenidas ávidas de passagem. Anjo injustiçado, uma índia sentada na calçada, cuida de filhos e vende cestos, pequenas jaguatiricas esculpidas em madeira, arcos, uns outros objetos que não identifico. Tem por certo a alma ancestral à desordem, no entanto, no corpo é onça rejeitada por Tupã. Carrega na garganta a falésia triste da fome. Às treze horas de um dia qualquer, antes da chuva, põe o filho menor no peito e sangra algum alimento. Que nome foi dado a esta mulher e a seus dois filhos? Que tipo de esquecimento flagelará a vida desta família? Os passantes não sabem, ignoram a majestade perdida nos traços sujos destes índios. Aqui, na província tão dada a enquadramentos germânicos, estas pessoas destoam da arquitetura humana que sustém a cidade. São nômades, exilados, porém resistem ao distanciamento branco dos urbanos.
Olhar para os índios é diferente que olhar para mendigos comuns: índios carregam no rosto a sombra da invasão estrangeira, possuem uma modelação física diferente, parecem santos, mas nada disso os salvou da quase aniquilação, se ainda estão vivos é porque não traíram a língua, não abandonaram a palavra que lhes foi dada pelos antigos. Lembro de alguns que trabalhavam nas lavouras de meu pai, faziam o serviço, acatavam ordens, recebiam o pagamento, tudo em português, mas as conversas, as alegrias expostas nas gargalhadas, vinham sempre em guarani. Não faziam questão de satisfazer nossa curiosidade desconfiada. A língua é a sua última trincheira. É o que lhes resta de dignidade, como se fosse um cofre onde guardam a memória de tempos prodigiosos e libertos. A força da palavra é incontável e sempre salvadora, principalmente para aqueles que se afastam das origens. O caso dos índios é um tanto pior: eles é que foram afastados das origens. Hoje, pelo menos nestes lados sul do Brasil, vivem à margem, à beira das rodovias, ou no centro das cidades, que sem nenhum pudor, os transforma em indigentes, quando qualquer um deles carrega uma força inexorável, muito maior que todo o progresso, toda a urbanidade que os engole diariamente.
Começa a chover, todos correm, são tão frágeis diante da chuva. A índia pára de amamentar o filho, recolhe os objetos à venda e sai andando calmamente. Ela e as crianças não choram, nem riem. São anjos demais frente ao comum. Sigo-os por alguns instantes, queria tanto poder salva-los, ou salvar-me, pois ao ver os índios, percebo que sou feito de asfalto e que esta cidade também me mantém indigente.
A mãe fala algo para o filho maior, que penso seja pra mim: “Tua alma caça na floresta. Este aqui cinza é ilusão, não precisa acreditar em nada. Logo acordarás”.
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