Coluna de Rogel Samuel
Rogel Samuel é Doutor em
Letras e Professor aposentado da Pós-Graduação da UFRJ. poeta, romancista,
cronista, webjornalista.
Site pessoal: http://www.geocities.com/rogelsamuel
Nº 116 - 2ª quinzena de setembro
(próxima coluna: 10/10)
O ESPAÇO PÚBLICO
Os homens, diz Arendt, são seres condicionados.
Tudo aquilo com que ele entra em contato demorado se torna imediatamente uma condição de sua existência. O que quer que toque a vida humana ou tudo com que entre em duradoura relação, toma imediatamente o caráter de condição da existência humana. Por isso que pode conhecer, determinar e definir a natureza de todas as coisas com que vive e que estão ao redor (e o que ele não é) é difícil o conhecimento de si mesmo. “O olho, que tudo vê, não se vê” diz um aforismo de Wittgenstein.
A filosofia grega era objetiva.
Descartes, no classicismo, pensou uma filosofia do sujeito: Seu Discurso sobre o método , que é um texto dedicado a orientar a razão para dentro do sujeito, o demonstra classicamente. Esse caminho levou ao idealismo alemão. Pois Kant, com sua crítica da razão, e Hegel, com o desenvolvimento do pensamento negativo (o objeto é o que o sujeito não é) chegaram ao conceito de subjetividade-objetiva, fundindo dialeticamente sujeito e objeto.
Mas a história da filosofia não parou.
Nietzsche quebrou a estabilidade. E Heidegger, no nosso século, “corrige” o caminho do pensamento, repensando a tradição metafísica que havia tomado a direção errada da errância do ser originário. O problema do sujeito atinge, então, um nível nunca visto, pois o problema não está além, mas aquém.
Entretanto, para as novas sociedades, o homem mesmo ainda é problema desconhecido para o homem.
No conhecimento metafísico, desaparecido quase totalmente das especulações modernas, existia o espaço da vida contemplativa dentro da pólis grega, em que todo movimento objetivo, toda atividade do corpo e da alma, bem como o discurso da razão (sempre objetiva) devia cessar por completo.
A vida contemplativa era o primado da existência do filósofo. Tomás de Aquino a definia, na Summa Theológica, como quies ab exterioribus motibus.
Ao contrário, o que caracteriza o pragmatismo alienante da época moderna é que o homem só conhece aquilo que pode fazer, não o outro, nem o próprio. Ou, como se diz no budismo, o homem é mente, mas a mente sabe o que faz, mas não se conhece.
Façamos aqui a distinção (que Hannah Arendt estabelece) entre imortalidade e eternidade, para esclarecimento desta alienação.
Imortalidade significava continuidade no tempo, através da realização de grandes feitos, obras e feitos notáveis. Por sua capacidade de produzir obras e de realizar feitos imortais, os mortais podiam, através das marcas de sua passagem, participar da natureza dos deuses.
Na Antigüidade havia os que ambicionavam à fama e, portanto, à imortalidade, e havia os que, satisfeitos com os pobres prazeres que a natureza lhes oferecia, viviam e morriam como animais. Nesses dois casos, uma alienação e uma falta de compreensão do real.
Outra coisa era a experiência do eterno, própria do filósofo no sentido estrito do termo, a visão da eternidade, ainda que passageira.
Diz Arendt que depõe muito a favor de Sócrates o fato de ele não ter escrito nada, porque não estava preocupado com a fama, ou seja, com a imortalidade. O filósofo vivia a experiência do eterno. Se escrevesse sua experiência, ambicionaria a imortalidade, pois procuraria deixar para a posteridade algum vestígio de si, sua fama.
A experiência do eterno, diz Arendt, só pode ocorrer fora da esfera das ambições humanas.
Se morrer é deixar de estar entre os homens, a experiência do eterno é morte.
O contrário é a preocupação com a fama, com a imortalidade. Eternidade e imortalidade são, dessa maneira, integralmente contraditórios.
Tal experiência, a percepção do Eterno, diz Hannah Arendt, tem de ser rápida, ninguém pode suportá-la durante muito tempo. O condicionado e mortal não pode encarar o eterno na sua eternidade, senão indiretamente, rapidamente, numa intuição momentânea. O eterno está fora do mundo do homem. A imortalidade, ao contrário, reside entre os homens, criação humana. O eterno não é condição de condicionamento humano, não é tocado pela ambição humana. O eterno advém ao homem, quando este nada deseja, na imobilidade do pensamento, silenciado pela vida contemplativa. Pois o eterno não pode ser convertido em atividade humana, é uma iluminação que não se consegue com o movimento do esforço, mas com a observação pura dos movimentos do pensar. O eterno é positivo, mas nasce quando há radical negação. Nem pode ser aprisionado pelo discurso, pois não pode ser objetivado: “O Tao que tem nome não é o Tao”.
O eterno é mais espaço do que razão. Está onde o “eu” não se encontra. Nem está delimitado no tempo, na convenção e no produto humano. O eterno é uma presença. E por isso não pode ser “usado” para a glória e fama do homem. Mais: o eterno não está no sujeito, porém vigora quando desaparecem sujeito e objeto. Ou quando não há espaço entre observador e coisa observada.
A Imortalidade, entretanto, foi impiedosamente abalada com a queda do Império Romano.
A destruição de Roma mostrou cruelmente que nenhum produto do homem pode ser considerado eterno.
A palavra “social” é de origem romana. Os gregos não a conheceram. Societas significava, para os romanos, uma aliança entre pessoas para um fim específico, “como quando os homens se organizavam para dominar outros ou para cometer um crime”.
O pensamento grego era diretamente oposto a esta organização “social”: essa associação natural cujo centro é constituído pela casa e pela família.
A pólis marcava a destruição de todas essas unidades organizadas à base do parentesco. A sociedade representava a família. O ser político, o viver na pólis “significava que tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e não através da força ou violência”.
Para os gregos, forçar alguém mediante a violência, ordenar ao invés de persuadir, eram modos pré-políticos de lidar com as pessoas, típicos da vida fora da pólis, característica do lar e da família, na qual o chefe da família imperava com poderes despóticos; caracterizava a vida dos “bárbaros”, cuja organização era comparada à doméstica.
Toymbee analisou este estado de coisa no seu livro Helenismo, em que mostra como a vida familiar era considerada pelos gregos como um lugar onde os participantes estavam sujeitos à perda da liberdade, e à descaracterização de suas individualidades. A vida familiar, diz ele, mantém os homens presos a um elemento por que não optaram e a que não podiam renunciar sem uma violação à própria natureza.
Diz Toynbee:
A vida familiar mantém a humanidade como serva de uma Natureza não-humana. No seio da família, o ser humano não é personalidade independente, com um espírito e uma vontade próprios — é um rebento na arvore da família, que por sua vez e um ramo da árvore evolucionária da vida, cujas raízes mergulham nos abismos do subconsciente.
A tradução latina do homem como animal rationale é um erro de interpretação. Para Aristóteles, o que elevava o homem não era a razão, mas o nous, isto é, a capacidade de contemplação, cujo conteúdo não pode ser expresso por palavras. Todos que viviam fora da pólis eram aneu logou, destituídos não da faculdade de falar, mas de um modo de vida no qual só o discurso tinha valor e sentido, e não a compulsão, não a violência, característica dos povos bárbaros.
Hoje o mundo ocidental vive a nostalgia do antigo mundo grego. Pois, na pólis, a mais hábil arma era a capacidade de argumentar, de discorrer uns com os outros. Argumentar com palavras e não com a ação violenta. Neste sentido vive o mundo moderno fora da pÓlis, num estado pré-político, em estranha regressão.
Da pólis para a sociedade opera-se uma mudança no pensamento político. Na sociedade, o pensamento político já não é arte política, mas economia, economia social.
O que chamamos sociedade passa a ser um conjunto de famílias organizadas do ponto de vista hoje burguês, num ser estrutural chamado Estado. Para os gregos, tudo que fosse econômico não era político, mas estava relacionado à esfera do apolítico da vida privada (isto é, privada de liberdade), da família. A vida privada era o lugar doméstico, privado por definição do espaço público, onde o dialogo era franco. Não é sem razão que os textos de Platão se chamam diálogos, isto é, através do logos.
Na vida pública vigorava o espaço da liberdade dos homens públicos, livres, não na dependência, mas na interdependência. E os escravos eram considerados seres desprezíveis não porque estivessem na condição escrava, mas porque se sujeitavam à escravidão, não preferindo a morte, o suicídio, e não tendo a necessária coragem para a vida de risco e de perigo que constituía a vida dos homens livres, onde o perigo, apesar de tudo estava sempre presente.
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