Coluna de Rogel Samuel 
Rogel Samuel é Doutor em Letras e Professor aposentado da Pós-Graduação da UFRJ. poeta, romancista, cronista, webjornalista.
Site pessoal: http://www.geocities.com/rogelsamuel

Nº 117 - 1ª quinzena de outubro
(próxima coluna: 25/10)


NOTAS SOBRE HABERMAS

              Entre as sociedades modernas, diz Habermas, somente as que conseguem introduzir no cotidiano os conteúdos de sua antiga tradição, transcendendo o meramente empírico, podem salvar a substância do humano.
               Esta é a colocação do misticismo “camuflado” de Scholem, que Habermas parece subscrever.
              Ali, Deus aparece como não-Deus, figura do pensamento cabalístico; e todas as coisas divinas e simbólicas podem igualmente aparecer sob a forma de um misticismo ateu.
              A concepção ingênua de que Deus possa reproduzir-se ou explicar-se não é aceita pela Cabala.
              E é precisamente porque Deus não pode nunca se explicar ou repetir que essa concepção de Deus pode ser ajustável à concepção moderna do mundo fragmentado, do devir cotidiano.
              Porque Deus não pode estar sujeito à alienação na qual ele mesmo precisa expelir de si mesmo as formas do mal, correspondendo a uma das pontas da dualidade maniqueísta do bem e do mal.
              Se não é possível criar um mundo perfeito, será exatamente porque não é possível conceber-se um universo estático, devendo-se considerar uma seria infinita de multiplicidades, caracterizadoras das próprias manifestações infinitas de Deus.
              Contraditoriamente falando, não foi o próprio Deus que se exilou, mas a concepção de um Deus imutável e estático e, se a modernidade é desestruturação e mutabilidade, este conceito moderno de Deus se ajusta melhor à idéia de realidade não permanente, nunca idêntica a si própria, nunca repetida.
              Exilado, o conceito de um Deus imóvel pode deixar o espaço vazio do que nunca se dá como inteiro.
              A concepção anterior totalizadora e estática correspondia às necessidades humanas daquelas sociedades de capitalismo de mercado, não mais presente na dinâmica do capitalismo de prestação de serviços.
              A religião, agora, foi transformada no ateísmo das massas, onde se extinguem os conteúdos utópicos da tradição.
A filosofia, então, deixou de ambicionar projetos metafísicos, invadidos e abalados pelo cientificismo dominante, que desarticula os grandes sistemas filosóficos que estruturavam a realidade e a justificavam perante os nossos olhos.
              A própria ciência, diz Habermas, ameaça ela mesma a ser “superada”. Anuncia-se uma iminente “superação da ciência”, ela que ainda tinha a ilusão de uma certa permanência.
              Transforma-se o ideal de uma ciência globalizante, ou sistemática, na funcionalidade prática de interesses tecnológicos fragmentados e imediatos.
              Retirou-se da ciência mesma o seu caráter de discursividade, o seu processo de encadeamento de organização acabada.
              A ciência se transforma em técnica, isto é, em instrumentalização de um saber objetivado, apropriado a resolver os problemas práticos, particulares, de um mundo muito fragmentado.
              Assim, o mundo deixou de ser o lugar das possibilidades, para ser reduzido a forças mecânicas, elementarmente desestruturadas, cujos limites e cuja inteligência só podem ser realizados por pequenas determinações.
              E a racionalização, visando a um fim especifico, perde de vista seu próprio o horizonte, impossibilitada de uma universalização, como nos tempos heróicos, e produz uma estranha sensação da irracionalidade.
              A violência na constituição da sociedade tecnológica se implantou como o sistema de segurança chamado Estado. O Estado foi o responsável pela maior violência (guerra, tortura, etc).
              A dominação política teve necessidade de nova legitimação violenta, criadora de um sistema estabilizador, que assegure uma normatividade, abrindo entretanto brecha de possibilidade de promoção incentivadora individual.
              O Estado dispõe de uma certa margem de violência para intervir, e sua intervenção assegura a forma de por em valor seus próprios princípios. Trata-se de uma legitimação que cria valores e acrescenta uma redistribuição de lucros, mantendo assim estável o sistema. Qualquer disfunção, qualquer crescimento desequilibrado de um dos seus elementos, logo é corrigido em benefício do todo. E a isso corresponde o crescimento de uma ciência política de controle e de saber que lida com dados relativamente corretos.
              Evita-se assim uma politização da grande massa da população, cuja opinião “publica” se torna apolítica e era orientada pelos veículos de comunicação.
              No Brasil se assiste a uma decadência da media como formadora da “opinião pública”, passando a ser apenas a formadora da opinião da classe média (10% da população), o que possibilitou a reeleição de Lula (contra a vontade da media).

A despolitização da grande massa tem suas raízes na concepção de que a ciência e a técnica são portadores da verdade, e é isso que transformou a ciência e a técnica em ideologia, diz Habermas.
               No fim do século XIX, o desenvolvimento da técnica entrou em feed-back com as ciências modernas através da pesquisa industrial sob o comando do Estado, que favoreceu em primeiro lugar a tecnologia militar criando os complexos industriais-militares.
              Desde então, as informações tecnocientíficas de que os civis dispõem provêm dessas fontes, quando são permitidas por concessão do aparelho de segurança militar desde que não constituam segredo de Estado, e assim possam ser liberadas. Estes aspectos também se refletem na individuação. Por isso, assistiu-se a um agigantamento do complexo tecnológico, que fortaleceu ainda mais o Estado, e o colocou muito acima, em relação de grau de poder e de saber, do domínio civil. Apareceram os serviços de informação a serviço do Estado Militar, como fonte de orientação do sistema, para defender o Estado de subversões localizadas, seja por atos, seja por idéias, o que pode por em risco o sistema.
              Nenhuma força que esteja contra os ideais de racionalidade, ou contra o sistema mesmo, tentando concorrer com o sistema, pode ser aceita.
              Desta forma os serviços da razão defendem a estabilidade ideológica.
              Esta é uma novidade, já que o poder de decisão do burocrata estatal é vigiado pelo todo do sistema, não se admitindo desvios.
              Para descrever a sociedade de serviços, Habermas parte da seguinte frase de Marcuse:
              “A força liberatriz da tecnologia — a instrumentalização das coisas — se converte em obstáculo à liberação, torna-se instrumentalização do homem”.

HABERMAS . Sociologia. São Paulo, Ática, 1980 a . (Grandes Cientistas Sociais, 15).
------. La crisi della razionalitá nel capitalis mo maturo. Roma, Laterza, 1976. 167p.
------. La technique et la science comme “idéologie”. Paris, Gallimard, 1975. 214p.

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