COLUNA DE THATY  MARCONDES 
Na área empresarial, trabalhou na implantação de projetos de administração, captação e aplicação de recursos, e ainda em redação e revisão de textos técnicos. Nascida em Jundiaí, reside atualmente em Ponta Grossa/PR, onde exerce o cargo de Delegada na área Literária (Secretaria Municipal da Cultura).

1ª quinzena de abril de 2010 - Coluna 127
(Próxima coluna: 18/4/2010)

DINAH

              Todo dia o plec-plec do salto alto no piso do Conjunto Nacional, na elegante esquina da milionária Avenida Paulista com a badalada Rua Augusta. Dois blocos de escritórios. No térreo, cinemas, lanchonetes, papelaria, até um engraxate à porta de uma barbearia. Engraxate?... Barbearia?... Isso foi lá pelos idos de 70, quando trabalhar com arte era chique; antes dos Bancos e da farmácia popular se instalarem com entrada rente à calçada, próximo ao ponto de ônibus.
              Pelo segundo elevador, sabe-se lá em que andar (ela já não se lembrava mais, pois tinha ido apenas uma vez), chegava-se ao escritório simples - porém finamente decorado - de um marchand especialista em Penacchi. Pelo primeiro, ela sabia de cor: 11º andar. Uma pequena sala, no final do corredor do amplo escritório de consultoria. O dono era consultor da NASA, diziam. Consultor de quê? Ela não sabia. Mas consultor também era chique, àquela época.
              Plec-plec... Oito e quarenta e cinco. Pontual. O tempo certo de atravessar todo o piso térreo até os elevadores, mostrar um sorriso largo para o ascensorista, abrir o escritório e passar o café. O famoso cafezinho elogiado de Dinah, a loira fatal, dona de uma elegância quase vulgar e por isso mesmo curiosa, aprendiz de secretária de um auto-intitulado futuro grande marchand. O proprietário do escritório, o tal consultor, ficou sócio: meio a meio, mas aí um terceiro, irmão do cônsul de um país sul americano, também entrou na conversa e no estoque com telas cuzquenhas, e agora eram três. Os quadros? Na parede, os que cabiam e os que podiam ser vistos ao vivo e a cores. O resto? Guardados na casa do tal consultor da NASA, por questões de segurança; disponíveis apenas por fotografia. Quando havia provável comprador, depois de investigarem sua vida pregressa, presente e no mercado futuro, marcavam visita a portas fechadas na imponente sala de reuniões, onde ela jamais fora convidada a entrar. Então ela se sentia diminuída, indigna de confiança, apenas aprendiz de capacho, simples datilógrafa “catadora-de-milho”, garota-de-recados, quebra-galho de luxo, algo do gênero.
              Não importava nada disso: afinal, eram apenas detalhes. Ela gostava mesmo era do salário pontual e do título de Auxiliar de Escritório; mas o que mais lhe dava satisfação e auto-estima era quando a enviavam ao térreo procurar na Livraria Cultura publicações sobre tapetes extravagantes, pintores quase desconhecidos, escultores exóticos. Meia hora de babação nas vitrines; alguns minutos armando a cara de pau para entrar, fazer perguntas e apenas folhear. Ficava sem graça. Queria comprar, queria um livro de arte para colocar na mesinha da sala de visitas do pequeno apartamento alugado; queria estudar, falar e escrever direito, saber mais; queria mudar definitivamente de vida, profissionalizar-se no mercado de artes, quem sabe; ser respeitada.
              E uma grande oportunidade surgiu: ela mesma vendeu um pequeno Volpi de um amigo do consultor, para um ex-cliente seu de antes da novidade do emprego dito honesto. Mas era uma pintura primitiva, parecia um desenho de criança: um anjo pintado em cores fortes sobre um pedaço de madeira fina, dessas usadas antigamente nas construções. Atrás tinha uma assinatura e a data, a lápis. Ligou e marcou com a enteada do pintor, para autenticá-lo. De táxi, até o  Cambuci, encontrou a porta da frente da casa aberta, foi entrando, e assustou-se ao ver um senhor muito simples, bem idoso, jogando paciência. Ele brincou perguntando se ele havia pintado aquela madeira, ao que Dinah respondeu que sim, que alguém dizia ser de sua autoria e tinha uma data e seu nome escrito atrás. Ao virar a pequena tábua, ele reconheceu sua própria assinatura de anos antes e lembrou-se da época, dando um singelo sorriso. Então pegou uma caneta, assinou e datou novamente, dando reconhecimento à obra. A mesma foi vendida com a finalidade de uma pequena tiragem, limitada a cem litogravuras, as quais deviam ser assinadas pelo artista, uma a uma, antes que fosse catalogada em Leilão, por tratar-se de obra rara. A impresão tinha que ser rápida, pois Volpi estava muito doente e em idade avançada. A comissão a que Dinah fazia jus tinha endereço certo: livros e catálogos sobre tapetes orientais. Estava decidida a estudar e virar especialista no assunto. Ficara encantada ao tomar conhecimento que os tapetes orientais não se utilizavam dos tons de verde, exceto por encomenda, e as encomendas eram executadas aos pares. Queira saber os porquês todos dos verdes raros, dos pares, dos pontos, do material, do tingimento, das regiões, dos mistérios cravados nas mãos que os teciam e os faziam tão fascinantes, misteriosos e tremendamente caros.
              “Bem abusada, para uma reles aprendiz de qualquer coisa, não acha?”. Foi a resposta quando tentou receber sua comissão, explicando sua finalidade. Ofendida, humilhada, diminuída, abaixou a cabeça e pediu demissão. Para receber o que era seu de direito, só entrando na justiça e contando com o testemunho de alguém do escritório. Mas a única testemunha cabível, a amiga que tinha arrumado o emprego decente, estava envolvida com o tal futuro-maior-marchand-do-país, o que também não lhe garantiu futuro melhor, tendo em vista que um dia o tal futuro-marchand metido a galã fugiu com uma amante do dono do escritório - o consultor da NASA -, para o Rio de Janeiro, levando todas as telas para um cliente em potencial. Nunca mais, nem notícia. E a moça voltou para o interior, na casa dos pais. Depois casou e transformou-se em mais uma dona-de-casa classe média, dessas que o tempo engorda e engravida.
              Dinah voltou para o batente de sempre: sobe e desce a Rua Augusta, agora do outro lado da Paulista, próximo ao Centro Velho, atraindo os clientes, sonhando com tapetes orientais, esbravejando que puta é mais honesta que muita gente rica e tida como decente, até mesmo mais digna do que muito consultor. Às vezes uma lágrima de saudades do plec-plec, dos cinemas, lanchonetes, papelaria, até do engraxate à porta da barbearia, das vitrines da Livraria Cultura. Quando conta que conheceu Volpi, os clientes se riem, deixam até uma gorjeta sobre a mesinha vazia da sala e abreviam a visita.


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