Crônica da 1ª quinzena de junho
Bocas de ilusão
Quando se escreve sobre um determinado tema e se quer marcá-lo para que o leitor possa fazer dele seu secreto escrito como se tivesse brotado de sua alma e não da mente do escritor, tem que se ter sempre um verso de Manuel Bandeira como meta: "O leitor satisfeito de si, se dará ao desespero".
Isso vale para qualquer manifestação que faça com que os sentidos do leitor, do ouvinte ou mesmo do observador alcancem o máximo indo além do ponto final da mensagem por ele absorvida.
Por exemplo, o cantor deve entoar um canto na medida exata em que o ouvinte sinta n'alma e complete a emoção capturada daquela mensagem, pois se ela ultrapassar o limite de emissão será como afogá-lo não em suas próprias lágrimas, mas sim nas do cantador.
Deve-se cantar a dor, não senti-la. Quem deve com o canto senti-la é o ouvinte, que dela fará sua própria dor.
Com um escrito qualquer, sob qualquer forma, pode-se usar a negativa da mensagem principal quando se quer na verdade afirmá-la para que o leitor saiba em seu íntimo que se trata de uma afirmação e sua concordância vá além daquela escrita. Torne-se cúmplice do escritor. Aquela negativa é sua afirmação, é sua verdade.
Alguns escritores descobriram esse mecanismo e o utilizam com maestria, principalmente quando o leitor de si dá não só o desespero, mas parte de sua alma, indo ao encontro do mistério, do medo, da necessidade de buscar aquele lugar jamais visitado, jamais sonhado. O próprio desconhecido.
É comum visitar a mente do escritor através de um livro e se ter impressão que tudo aquilo existiu e se fez parte dela como personagens vivos, com aquelas emoções e sentindo as mesmas angustias ou felicidades ali escritas.
As contradições necessárias para um bom escrito
sempre devem existir, é o chamado ponto e contraponto. A afirmação
e a negativa, a felicidade e a tragédia, Deus e o diabo, céu
e inferno, assim por diante, pois essa é a história da
humanidade.
Para se ter idéia de como um bom escrito deve ser, ele deve chegar em ponto tal que o leitor, qualquer leitor, de acordo com suas crenças, com sua cultura, com sua ideologia, percorra um caminho que ele não gostaria de percorrer, pois se contrário for ele perderá o interesse por aquela escrita.
Mas ao mesmo tempo ele se identifique de tal maneira com aquele escrito que intimamente ele diga: "é isso que eu queria dizer. É isso que eu queria ter dito".
Por isso é mais fácil sentir através de um mecanismo qualquer o que se quer sentir de fato, já que não haverá necessidade de exposição ou correr qualquer risco na busca daquela emoção ou daquele momento imaginado.
Alguns poetas com inigualável poder de síntese e através de breve mensagem registraram todo o universo humano, fazendo com que seus escritos se tornassem eternos e certamente alcançarão futuras gerações.
Manuel Bandeira, por exemplo, assim imortalizou: "Andorinha lá fora está dizendo: passei o dia à toa, à toa. Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste! Passei a vida à toa, à toa".
Fernando Pessoa eternizou: "Tudo vale a pena, se a alma não é pequena".
E o mestre Drummond perguntou e jamais alguém irá responder: "E agora, José?"
O "agora" de Drummond pode se referir ao momento presente ou passado, ou mesmo futuro, pois quando houver o inevitável encontro de todos nós com nosso "verdadeiro Eu", a resposta poderá ser surpreendente.
E lá, talvez não sejamos amigos do rei.
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