Coluna de 9/6
(próxima coluna: 23/6)
A LITURGIA DO IMPURO
Da liturgia católica
Está na frente da catedral, a casa que outros melhores ergueram em louvores a Deus. É homem de idade penosa, não doente, apenas sentenciado pelo cansaço e disposto a um primeiro ato de coragem. Tem nas mãos uma faca, no entre as pernas os testículos, no todo o corpo a idéia: vai castrar-se. Vai devolver a Deus o que nunca usou. Deve ser quase noite. Desistiu da noção do tempo. Não sempre, já foi homem asfixiado em relógios. Já viveu colado aos ponteiros imprescindíveis do trabalho. O trabalho foi seu túnel de fuga. Acordava obcecado pelas horas futuras do dia. Coroava de esforço físico o espaço de tempo. Tudo para não pensar. À noite: o sono. Nos finais de semana o inferno do nada a fazer. Não conseguiu ser homem de intelecto, ou afeito em família, ou visto por mulheres, ou entregue a Deus. O que restava era dormir ao máximo. Dormir para não viver. A agonia interpretou seus papéis nele. Nunca entendeu o teatro da agonia. Por que carregava ao peito um palco de admoestações? Não definiu o que o acidulava. Nunca pode. Anoiteceu. Logo o zelador fechará a catedral vazia. Vazio, oco, vasilha de nada. O que foi? Por que nos outros a alegria vinha aos borbotões? Lufadas de êxtase em seus corpos plenos de normalidade. Supriam para si os planos. Nunca pode. Esconde-se no confessionário. Talvez o zelador não o veja. Não o viu. Está sozinho dentro da catedral escura. Será que o estômago de Deus tem estes vitrais? Será que Ele vai aceitar sua hóstia? Buscou a fé. Realmente caçou este tigre topázio incrustado nos templos do humano. Pouco conseguiu estocar em si tocaias de paciência que a fé exige. É tudo muito feito de invisível, de aceitações estranhas ao concreto. Se está na catedral dos católicos é porque o olhar destes tenta materializar a fé com imagens, seja do filho Dele, seja do Seu espírito, seja dos santos: homens e mulheres supliciados a serem exemplos de abnegação. Admira os santos. Queria ser um deles. Não teve vida para isso, talvez sua morte purgará milagres e ainda salvará almas. O castrado santo. Será bom ver os humanos rastejando em busca de graças. Isso é fé? Acreditar que depois de morrer pode ver-se imagem nos altares das catedrais. Não é fé. Esperança embebida em delírio. Antes de chegar no altar observa a via sacra toscamente pintada na parede, está preparando a sua via dolorosa, feita de uma só estação: a castração do que não soube as magnitudes do amor. Passa ante as imagens dos santos, cerâmica frágil comportando a vitória extensa dos que tiveram a busca resumida em escultura. Será vitorioso? Terá o seu martírio moldado em argila ou talhado na madeira? Bem mais fácil se tornar matéria-prima para o esquecimento. Olha os bancos: terá nome este apoio atrás dos bancos para os joelhos? Terá nome o ajoelhar-se após a comunhão: corpo e sangue do filho ingerido na busca do pai. Comungou muito nos rituais, entoava cânticos, seguia até o sacerdote: “corpo e sangue de Cristo” e aquilo ia garganta abaixo, quando voltava ao seu lugar, o cenho cerrado, a cabeça curva, os joelhos dobrados em oração, tudo para que “o corpo e o sangue de Cristo” aplaudissem sua agonia e ela agradecesse e encerrasse seus espetáculos nele, tudo para que as cortinas baixassem sobre o palco e pudesse ser mais homem próximo de todo o resto dos homens. Tentou muito quando jovem apegar-se com sinceridade a Deus. Nunca pode. Vai pelo corredor central: quantas mulheres passaram por aqui sagrando-se em casamento. O noivo, os pais, a família, o padre, risos, fotógrafos, adornam a natureza estranha que há nos ritos religiosos oficializantes do casamento. Participou de alguns também quando jovem, por curiosidade, por tentativa de musicar o sonho: ser amado por uma mulher, amar, carregar nas envolturas da pele este outro sentimento tão presente em tudo. Contudo se manteve criança batizada em inocência e o amor lhe pedia nudez, afrouxamento das vergonhas, exposição, aniquilamento do egoísmo. Sexo, o amor lhe pedia este princípio de sobrevivência e manutenção da espécie. Algo ocorreu entre uma passagem e outra de sua vida que danificou a percepção que tem deste desastre que se dá entre os corpos. Instalou um cárcere sobre a pélvis. Não sabe em que tempo, em que momento houve o aprisionamento dos instintos. Nunca os libertou, mas sempre gritaram. Algumas vezes, suas mãos se aproximavam do cárcere e quase circunscreviam carícias de fogo. Noutras, se aproximou das meretrizes de beira de estrada que esmolavam ninharias para em troca, porem a boca cariada sobre seus genitais e chuparem ávidas. Nunca foi além do contato com o olhar, da palavra entrecortada de submissão e safadeza, do sussurro nas esquinas podres da cidade. Foi com estas mulheres descontroladas que teve o mais próximo do sexo. As outras, as de casa e família, desconheceram-no por completo. Quanto à mão sobre o cárcere, desobrigou-se muito cedo do ato de conceder-se o prazer. Era trabalhoso o masturbar-se, um vai e vem inócuo do tato sobre o falo. Despe-se agora que chega próximo do altar. Deus o estará vendo como em tempo algum pode vê-lo? O que está fazendo destituído de razão dentro de uma igreja? Por que o livre arbítrio? Por que nele o acaso determinou as decisões? Sem coragem, não medo. Sem força, não fraqueza. Sem impulso, não paralisia. Apenas indiferença. Pai e mãe não conheceu. Foi educado por outros. Será essa a sensação que Deus tem em relação aos homens? A de ser bagagem defeituosa que precisa ser carregada? Deus é um peso, por isso os humanos constróem estas casas, dizem adora-lo aqui dentro. Apenas descansam da lida diária. Atrás desta mesa põem um melhor, amplo no entendimento, para ouvi-los em confissão, redimi-los, e atestar que Ele não é carga difícil. As igrejas são erigidas para enganar o humano: vou amá-lo sobre todas as coisas e fingir que não sofro por leva-lo às costas, feito asno. A família afastou-se dele aos poucos. Tentou aproximações várias, mas sempre muito vago, muito feito de solidão, não alcançou o afeto que dedicavam aos outros filhos reais. Depois solidificou o hábito ser sozinho. Deus também deve ser sozinho, mas deveria afastar-se dos outros como se afastou dele. Seria um sem fim de castrados no mundo. Será que os outros, sempre vítimas da sua inveja, são assim tão próximos de Deus? Devem carregá-lo melhor. O fingimento é para poucos. Daqui, onde nunca esteve, percebe como se sente o escolhido para repetir os sermões. O elo de ligação entre o filho crucificado e seus animais de carga. Na mesa: flores, castiçais, o cálice, a bíblia. A palavra definitiva. Como produz insanos estes escritos. O que sabe deste livro é o que captou nos discursos lançados aos ares, seja nas igrejas, seja nas praças por crentes em outro caminho. Quantos lhe disseram que Deus é o mesmo, o caminho que se vai a Ele é que são muitos. Como isso se dá? Cidade com várias entradas? Não pensa assim, gosta da igreja fundada pelo filho. A criadora dos dogmas, das indulgências vendidas, do celibato, aquela que instituiu como verdade a hipocrisia. Acha que já pensou isso por agora: gostar dos católicos. Andou em círculos o destino. O pensar não é diferente. Pouco sabe do livro que dizem ele escreveu. Não é culto. Até passaram-lhe às vistas outros atormentados, envoltos em dúvidas, flagelos, quadros, poemas, inutilidades. Pouco lê ou escreve. A escola era fadiga. Cansou-se só de aprender o nome. O nome que lhe registraram em cartório. Lá naqueles arquivos é igual aos outros. Amontoado de letras significando ausências. Deus deve ter cartórios, ou seriam obituários? A humanidade não nasce para encontra-lo. Morre para encontra-lo. Tira os objetos de cima da mesa, será ele mesmo sua oferenda. Arromba o ostensório. O corpo do filho em suas mãos. Sobre o altar, em nudez, inicia a celebração:
em nome do pai, do filho, do espírito santo e do que não fui, seja eu bem vindo. Bendito seja Ele que me escavou os recônditos e encontrou-me em pepitas de coragem para a imolação. De braços erguidos, sem esquivança, peço em ato penitencial: Senhor tende mais que piedade de mim. Tende olhos e ouvidos atentos: não me perdoe os pecados e me conduza à vida efêmera, amém. Na primeira leitura do livro do profeta tenho as palavras impessoais da soberba e da miséria, abutres que dilaceraram a minha trajetória: a soberba come meus membros superiores, o tronco, os cabelos: pois me considerei sempre o escolhido a ser vítima, o cheio de exílio, o que atravessou os quarenta anos de deserto sem encontrar a terra prometida. O que não operou milagres além de viver para o nada. A miséria alimenta-se dos membros inferiores e do ânus. As pernas movem-se pelas ravinas da tristeza, onde o ânus defeca o pouco alimento físico e o muito das úlceras do tédio. Hoje, celebro-me em restos. Na segunda leitura, a carta do apóstolo recomenda-me apaziguar o descontentamento e acompanhar o cortejo da serpente nomeada felicidade. Devo honras à morta, mais que honras, devo a ela a ressurreição exigida dos injustiçados. No evangelho, a fala do filho prenunciando finais e pedindo vigílias: etéreas lembranças do que me atingirá. Ao filho glórias e silêncios. Terá parte dos meus testículos em troca de todo o “corpo e sangue” que adquiri dele. Creio piamente em meu ato de entrega, de remissão da renúncia. Creio no espírito impreciso do perdão. Creio no padecimento, nos três dias de morte dentro do túmulo, no assento à direita Dele para me julgar vivo e morto. Creio no vazio eterno. Amém. Eu lhe peço, atendei minha prece de ínfimo. A pressa se instaura sobre a liturgia do impuro. Na preparação das oferendas, receba aquilo que em mim é mais longe do uso. É justo e necessário, é meu dever e salvação dar a Ele o que me desferiu às grutas da covardia. Ele é o santo, Senhor do universo, tudo o que criou proclama seu louvor e retorna a Ele em mácula ou intacto, por isso suplico, santifica por Teu Espírito a oferenda que ora Te ofereço, para que se torne parte do corpo e sangue de Teu filho e eu me chegue a Ti. Nesta noite em que vou me entregar, tomo os testículos, dou graças e me castro dizendo: tomai, comei, isto é meu corpo que será entregue a Ti. Do mesmo modo ao fim do flagelo, tomo o cálice em minha mão, encho-o de sangue, dou graças, e digo: bebei, este é o cálice do meu sangue, o sangue da eterna aliança que nunca aceitou o amor, agora é derramado para o esquecimento do que me fiz ser. Faço isso em memória de um outro que transitava irrequieto por dentro de mim. Eis o mistério da fé no possível. Livro-me de todos os males e dou-me a satisfação eunuca dos imerecidos. Ajudado pela misericórdia, prendo-me ao pecado e desprotejo-me dos perigos. Meu é o reino o poder e glória para sempre. Eu vos deixo-me, ó paz. Eu vos concedo-me, ó paz. Não visiono minha agonia, mas a fé que anima meu corpo. Foi segundo nosso desejo, meu e Dele, que a unidade do espírito insipiente da dor nos una para sempre. Imponho meus pecados a mim e dou-me a salvação. Feliz, faço-me a ceia do Senhor. Eis o animal que recebe o pecado do mundo. Eu não sou digno que entreis em meu corte, mas dizei uma só palavra e serei cicatriz. Em nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo e do que não fui, sigo para as distâncias da escuridão e vou de mim desacompanhado. Amém.
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