Coluna de Rogel Samuel 
Rogel Samuel é Doutor em Letras e Professor aposentado da Pós-Graduação da UFRJ. poeta, romancista, cronista, webjornalista.
Site pessoal: http://www.geocities.com/rogelsamuel

Nº 118 - 2ª quinzena de outubro
(próxima coluna: 10/11)


A CRISE PERMANENTE

          A crise permanente das sociedades democráticas pode ser investigada do ponto de vista de algumas considerações que partem do ponto de vista de sua individuação.
          Do ponto de vista social, o fenômeno desestabilizador pode ser considerado como uma ampliação do fenômeno individuante.
          Este conceito vem da própria imagem que oferece à vida dos seres humanos, seja individual, seja social.
          Enraíza-se na idéia de “instabilidade”, portanto de sofrimento e dor, a angústia causada pela instabilidade natural de tudo, seja objetiva, seja subjetivamente.
          Vai do estado de sofrimento vago, tão explorado pela literatura romântica, até a profunda angústia e sentimento de inocuidade pós-moderna, chegando ao sofrimento ordinário da vida cotidiana. Representa o perigo e o medo, a queda e o mal, a alternância do melhor com o pior.
          É a ausência de emancipação, de liberdade, como determinação ou como condição da vida biológica.
          O fenômeno da crise permanente também pode indicar a consciência comunicativa ou consciência política com o fim da possível maturidade que disso pode surgir. Mas, o contínuo estado de crise em que vive normalmente o sujeito e a sociedade tem a ver com a não-permanência, com a não-compleição, com a natureza modificadora de tudo, num começar e terminar para novo recomeço, a interdependência, que dificulta o ideal de libertação integral, num mundo cujos elementos constitutivos não têm nem duração nem estabilidade, em que tudo está mudando sempre, onde nem mesmo as pedras permanecem. Onde não há nem imortalidade, nem eternidade. Ou onde o eterno é o eterno retorno.
          E tudo está em movimento, portanto tudo é efemeridade, como proclamaram os poetas de todos os tempos.
          A realidade para nós não é um dado pronto, uma construção acabada.
          A realidade é um dinamismo, é um possível, é um vir-a-ser.

          A vida propriamente dita, a vida bio e psicológica, é definida como ação interagindo entre seres e coisas, numa pulsação de expansão e extinção, e que afinal se encaminha para a morte. O aparecimento de novas formas, num movimento que não parece ter tido nem princípio nem parece ter fim.
           É o atrito, a atração e repulsão, constituinte de tudo o que é existente, no sentido mesmo de que a vida não tende para nada que seja estável, nada que seja o mesmo, gerando um certo estado de insatisfação, de vazio — que tende para uma satisfação e para um preenchimento nunca conseguido, através da ação volitiva individuante, quase sempre envolvendo tensão e sofrimento, mas também euforia e glória.
          Essa desestabilização permanente tem a ver com a desarmonia e harmonia, com o caráter perecível e recuperador, com a decomposição do que é composto, onde só o nascimento é vida, como disse Heidegger, e o que vem depois é um prolongamento do impulso inicial das energias dessa aparição. Diz Heidegger que, para os que só têm sentido para o próprio e particular, a vida é somente vida. A morte é, para eles, morte e mais nada. Na realidade, porém, o ser da vida é, ao mesmo tempo morte. “Tudo, que começar a viver, já começa também a morrer, a caminhar para a morte, de sorte que a morte também é vida”.

          E assim, tudo deixa de ser o que antes era, e se transforma, se desagrega, e se agrega a novos elementos, numa modificação sempre, através de infinidade de transformações e manifestações diferentes, num fluxo contínuo de recriações, de vir-a-ser, de mutações. Tudo vigora, não como uma integridade em si, mas num intercâmbio, em mútua transformação sucessiva, incessante, sem limites claros e precisos durante muito tempo, num processo de assimilação e desassimilação em que até o fluxo da consciência e do pensamento atravessa o homem num rápido passar que aparece e desaparece.
           Assim é a dialética da individuação no mundo, onde as coisas mudam muito rapidamente e é o que causa o sofrimento e a insegurança radical, onde o próprio sujeito é pluralidade de individuação e desindividuação transitória, um processo de conhecimento e desconhecimento de todos os diversos aspectos de tudo que se está formando e desaparecendo, tudo que está sendo superado sucessivamente.
          A matéria, as sensações, as percepções e a consciência são igualmente condicionadas, impermanentes, sujeitas ao processo desestabilizador.
          E isso se refere, como se disse, com os conceitos de imortalidade e eternidade que desenvolvemos em outro lugar. Depois da queda do Império Romano nada que seja produto do homem pode ser considerado permanente e imortal, e mesmo a experiência do eterno, de que fala Aristóteles, é transitória, não suportando o homem, durante muito tempo, a experiência do Presente, pois o homem é sempre provisório.

          A racionalização operada pelo mecanismo de controle de Estado foi descrita, como se viu, como elemento reorganizador do todo, quando este se sente ameaçado por elementos, que crescendo desordenadamente, podem provocar rachaduras no equilíbrio estrutural, em sua relação harmoniosa com a produtividade, institucionalizando a norma e operacionalizando os custos, mantendo o equilíbrio e operando um saber tecno-científico, mantenedor do chamado complexo industrial-militar que se fortalece, em suma, com este controle que garante o predomínio do poder.
           Do ponto de vista individuante, a vontade de segurança impulsiona as atividades conscientes e os vários relacionamentos com o trabalho, a combinação de forças ou de energias psicológicas que mantêm o homem vivo, o desejo de ser, de continuar, de se ter cada vez mais em existência, o continuísmo e o desejo construtivo e “positivo” de solidez e de imortalidade, o crescimento interno gradual, a continuidade da mesma série, o poder da vontade e o desejo de aquisição dos bens de consumo e da propriedade privada, podendo-se dizer que o homem burguês tende sempre para a propriedade privada e para o crescimento.
          A vontade de segurança individual nasce da sensação de insegurança, provocada pelo contato com a crise da realidade, e é o desejo reduzido à sua simplicidade prática e objetiva, que a história traz como que inerente ao sangue.
          Praticamente, somos educados para desejar. Assim, o contato com o mundo exterior, instável e perigoso, gera no interior da individuação a sensação de carência e insatisfação, de incompletude e temeridade, provocando a vontade de segurança e permanência.
          A energia dessa vontade é, em síntese, a energia que mantém inteira e viva toda a complexidade da própria vida e se manifesta em aspectos variados do desejo e do apego aos seres e às coisas que passam, às idéias gerais de felicidade e de realização, às teorias e crenças numa vida depois da morte, à busca de conforto e, principalmente, à narcose da morte, pois o homem tem consciência de que não só é mortal, como também e principalmente de que vai morrer, sendo esta consciência, a de que vai morrer, totalmente ausente de suas certezas mais imediatas. É a narcose da morte um mecanismo de defesa.
          Tudo se origina nessa energia da vontade de segurança, permanência e satisfação, de autopreservação e vir-a-ser.
          Todo sentimento de aquisição e de posse, de propriedade privada e de reconhecimento social ou público é o resultado dessa vontade.

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