COLUNA DE THATY  MARCONDES 
Na área empresarial, trabalhou na implantação de projetos de administração, captação e aplicação de recursos, e ainda em redação e revisão de textos técnicos. Nascida em Jundiaí, reside atualmente em Ponta Grossa/PR, onde exerce o cargo de Delegada na área Literária (Secretaria Municipal da Cultura).

1ª quinzena de abril de 2010 - Coluna 127
(Próxima coluna: 3/5/2010)

A última dose

        Sim, eu o fiz, sim. Por amor, por solidariedade, por amizade, por dever. Eu ainda estava dentro dela, quando o fiz. Ela não respirava mais, e eu ainda a preenchia e podia sentir suas entranhas ainda quentes. O sangue ainda circulava em volta do meu membro intumescido, mesmo depois do gozo abundante que inundou aquele corpo agora sem vida. Sua expressão era de felicidade. Afinal, quando a mulher é mais plena do que depois de ser amada e preenchida por seu homem? Seus olhos estavam fechados e havia aquela estranha expressão de felicidade total, inteira, divina. Acredito nessa coisa que dizem os hindus: esse tal “Nirvana”. E olhe, se de fato isso existe, constatei olhando para ela, depois que a matei.
        Um tiro. Um único tiro... certeiro. Engatilhei a arma enquanto a beijava profundamente. No momento do gozo, o tiro. O sangue escorreu de suas têmporas para a pedra, sob nossos corpos, no jardim. Tingiu de vermelho a pedra sem cor. A pedra agora era vermelha, como o vestido que ela usava – o mesmo vestido que levantei desnudando sua intimidade e suas belas pernas, alvas como nuvens de verão; o mesmo vestido com o qual a enrolei e a desci sob a terra úmida.
        Eu ainda estava nu. Carreguei-a, nu, pelo jardim de eras e flores, até a cova previamente preparada para acomodá-la. Não, não foi vingança... apenas atendi seu último desejo. Isso é amor, entende? Ela morreria de qualquer modo, como todos nós, mas seus dias estavam contados e ela definhava... Dia a dia definhando, ficando murcha de vida, olhar embaçado, gritando por mais uísque e mais morfina, tamanho vulto de seu sofrimento, tamanha extensão de suas dores cancerosas.
        Um tango trágico, o funeral solitário. Um blues nostálgico, nossa história. Depois que a acomodei sob a terra, a chuva banhou meu corpo ainda nu. Deitei sobre a terra que agora recobria seu corpo e chorei. E a terra começou a virar lama e ceder com meu peso. Comecei a afundar. Tive medo de tocá-la novamente em meio à terra enlameada e querer trazê-la de volta à vida, entrar num redemoinho de desespero e angústia. Ela não iria gostar disso.
        Então levantei. Afofei a terra, alisei o lugar com a pá e me retirei. Limpei tudo: a pá, minhas roupas, até a pedra. Depois disso tomei um banho morno e demorado, lembrando dela. Ela gostava de me dar banho, esfregar minhas costas, acarinhar meus cabelos, beijar meus olhos. Uma dose de uísque e adormeci na cama agora tão imensa, tão vazia, tão fria. Uma estranha sensação: era como se a sentisse novamente, aninhada em meus braços, sob meu corpo, envolvendo-me por inteiro. E gozei novamente, em pleno sono, em meio ao sonho.
        Isso é amor, entende? Ainda somos um do outro e ainda nos amamos. Sempre foi assim. Sempre será desta forma.
        Acabo de voltar do médico, e por uma irônica coincidência do destino, o diagnóstico: câncer... também. Até nisso, a minha lealdade à amada. Já providenciei uma cova, ao lado dela. Pena não ter sobrado ninguém íntimo para me revestir de terra, para chorar nu e se molhar de chuva, para gozar sozinho na cama, para sentir saudades, para não ter arrependimentos... para contar a história.
        Os fundos musicais agora se calam... Talvez uma ópera bufa, de um mundo distante, de outra realidade, de uma história que não é a nossa.

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        — Garçom, mais uma dose, por favor... e sem gelo, que a chuva lá fora cai fria e não quero me resfriar.


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