Coluna de 9/7
(próxima coluna: 23/7)
A LEITURA
Escrito na tua mão: teu destino é curto. Breve será o dia de tua morte.
Olho para a cigana em busca de um sorriso desmentindo:
estou brincado, tua vida será feliz.
Não encontro nada. A expressão trágica de uma mulher que pode ler o futuro escrito nas mãos. A expressão tirânica de uma mulher que sabe seu próprio futuro e não tem medo. Saio correndo. Dentro da cabeça martelam-me as palavras: “breve será o dia de tua morte”. Como pode minha mão ser livro para o destino? Por que o destino escreveu tão pouco em mim? Sou feliz. Tenho filhos. Jovem ainda, trinta e dois anos. O amor compareceu na minha vida muito cedo e completo. Tenho casa, amigos, carro, emprego bom, família: os artefatos para a felicidade. Por que agora me descubro morto em breve? Sei que não deveria acreditar em uma mulher maltrapilha que me parou na rua, pegou minhas mãos e sem hesitar arremessou-me num calvário. Olho os hieróglifos que me escreveram nas mãos. Nada vejo, sulcos, como se fossem cicatrizes das vidas que dizem eu tive. Chego em casa, os filhos abraçam-me. Beija-me a esposa, contam-me o dia. Escuto pouco. Escuto o martelo: breve será o dia de tua morte. A esposa estranha, pergunta o motivo da distância. Disfarço-me em proximidades. Olho para as mãos dos filhos. Estão lá as linhas, o que está escrito nelas? O que o destino cometeu para estas crianças? Saio um pouco de casa. Vou andar por aí. Não tenho sono. São palavras para satisfazer a mulher. Tenho que achar a cigana, ela vai reler minhas palmas, vai dizer que errou a leitura, desacostumada com o mistério, enganou-se. Ela vai ler vida longa em mim. Vou procurar a cigana. Não tenho coragem para a morte. Na verdade nunca penso nisso. Próximos de mim já morreram: o pai, os avós, alguns conhecidos. Sempre olhei para eles com piedade. Cortados. Súbito não respiram, recebem terra por sobre o corpo e desaparecem. Não tenho coragem para enfrentar a arma que o estar vivo nos aponta. O irremediável que puxará o gatilho e tombaremos árvore imprecisa. Saber é o que magoa. Tenho que achar a cigana, desfazer o dito, retornar suas palavras à garganta. Tenho que viver sem saber que logo morro. Continuo olhando para as mãos. Analfabeto. A cigana deve ainda estar na cidade. Ciganos são errantes, não posso perder tempo, tenho que achar a mulher para que seja desfeito o presságio. Volto tarde, a esposa na sala manifesta preocupação:
cidade violenta, andar por aí é perigoso, o que aconteceu hoje?
Digo evasivas, trabalho muito. Insônia. Não fui longe. Vamos dormir. Amo a esposa para silencia-la. Mecânico. Um pouco de culpa atravessa meus movimentos. Quase não posso. Termino. O beijo do foi bom. Nas mãos as linhas escritas anunciando minha brevidade. Dorme a mulher. Dormem os filhos. Em mim gritam os escritos lidos pela cigana. Falto ao trabalho. Doente, não posso ir, amanhã estou melhor. Entendem, sempre fui exemplar. Passo o dia atrás da cigana, cada canto, cada miséria da cidade foi visitada por mim, não viram ciganos por estes dias:
enganado o senhor, eles sempre acampam aqui, faz mais de ano que não aparecem. Tem certeza?
Sou revestido de toda a certeza que há. Ontem uma mulher me parou na rua, pegou minha mão e disse:
escrito na tua mão: teu destino é curto. Breve será o dia de tua morte.
Como pôde sumir assim? Passo o fim do dia no lugar onde me soube morto. Observo cada pedestre. Nenhum é a cigana. Volto para casa. Finjo melhoras. Tento me lembrar do que eu era antes de ontem. Do que dizia aos filhos, do que a esposa gostava de ouvir. Rememoro os gestos, o sentar-se na poltrona, o interesse no dia dos pequenos, suas tarefas, suas travessuras, o lugar à mesa, o jantar, algum olhar malicioso para a mulher. Faço tudo dentro do estabelecido. Na cabeça os martelos continuam ressoando. Nas palmas, as linhas continuam escritas. Falto ao trabalho novamente. Preocupam-se. Gripe forte. Febre. Vou a um médico hoje. Dizem que eu me cuide. Quase a pergunta foge da boca: como? Se uma mulher previu minha morte? E não tenho outro fazer que não caça-la. Quase que digo, só retorno ao trabalho depois que a cigana desfizer o dito. Antes não. Minto é claro, se estiver melhor amanhã vou. Compreendem, sempre fui exemplar. Minto para esposa também: hoje nem me procure, estarei em reunião o dia todo. Durante a manhã percorro o centro da cidade, vejo todo tipo de gente. Nas mãos de todos: linhas semelhantes as que tenho. Mas o que revelam estas palmas? Por certo, não o mesmo infortúnio que carrego. Não digo que não há vida mais trágica que a minha. Sofrem mais do que eu muito desses passantes. Mas por acaso sabem o que lhes aguarda? Por que acredito tanto naquela mulher? Por que ela impingiu em mim este fracasso da vida curta? Finda a segunda tarde depois que me soube morto. Entro num bar. Café. Não, para comer não quero nada. O atendente me observa como se me conhecesse:
O senhor teve aqui ontem procurando uma cigana, não é mesmo?
Sim. Antes que a boca se apresente os olhos perguntam: você a viu? Anda por aqui uma cigana que lê as mãos?
Seria aquela ali parada na porta?
Viro-me para trás. Estática, submersa em sabedorias a mulher me olha entre a piedade e a soberba.
Procura-me?
O que fizeste comigo: desfaça. Nada daquilo que disseste está escrito aqui. Vamos, desfaça o presságio. Diga-me que serei longo na vida, que terei netos, bisnetos, que ultrapassarei a barreira da idade humana, diga-me que minha vida não tem fim. Que é isto que escreveram nestas linhas que carrego.
Minto se é o que queres, tua vida será longa, envolta em felicidade, a morte não atingirá teus dias, muito menos tuas noites, dormirás tranqüilo e acordarás disposto ao trabalho por muitos e muitos anos. Pronto. Menti, estás contente? Fala-me a verdade.
Teu destino é curto. Breve será o dia de tua morte. É isto que conténs nas linhas. Não há escapatória. Breve, muito breve não viverás mais.
Como sabes? Como podes me sentenciar desta forma? Te fiz algo? Machuquei alguns dos teus? Como me escolhes ao acaso e condena-me à morte?
Meu caminho é cruzado por aqueles que foram escritos pelo destino com as letras originais da morte. Olha este rebanho que atravessa a cidade, sabes quantos iguais a ti? Um ou dois. Todo o resto cópia, rascunho, esboço do texto real que tu carregas. O destino escreveu em ti o texto final. Sem erros ou borrões. Em ti o livro definitivo. E estou aqui para ler-te. Posso mentir, enganar tua consciência, incorporar nos teus dias a esperança de vida longa, no entanto o que contemplas nas mãos, quanta perfeição.
Porque eu nunca soube disto? Sempre indiquei à minha vida o metódico, o correto, o que não se insinua entre desvios e escuridões. Sou homem claro, estruturado para a felicidade. Não há em mim ranços de morto. Por que então fui escolhido?
Não sei, sei que breve será o dia de tua morte, é o que carregas.
Saio em desespero, ainda ouço o grito:
pode correr, nada afetará a verdade, breve será o dia de tua morte.
Por que caí nesta teia? movido por uma curiosidade estúpida, estendi a mão à cigana. O que era uma consulta de brincadeira se tornou este amontoado de absurdos. Ecoam os martelos, agora em dobro: duas vezes vi a cigana, duas vezes ela previu meu destino curto. Volto caminhando para casa,na cabeça os martelos, nem quase ouço a mulher:
Por que veio a pé? Onde está o carro, te roubaram?
Roubaram minha ignorância, foi o quase grito que dei. Digo a esposa nova mentira, não se preocupe o carro está guardado na empresa, vim de carona e um pouco andando, precisava disto.
Vem jantar, está tarde, as crianças já dormem.
Invisto-me de esforço e engulo a comida, o resto é perfurado num silêncio de velório, meu velório. Agora já assalta-me a idéia de como vou morrer em breve. Ataque do coração? Atropelado? Serei vítima de um assassino? Desfaleço na simplicidade do sono. Durmo e não mais acordo? Não durmo. Caminho pelos corredores da casa, todos se distanciam ressonando, a mulher, os filhos. No quarto das crianças: despeço-me. Os filhos estão aqui seguros, envoltos em felicidade familiar e eu carregando nas mãos os escritos do destino. Traí meus filhos. Não deveriam ter nascido, aprendido em mim um pai, se em breve será o dia de minha morte. O que farão estas crianças? São rascunhos como disse a cigana, ou deixei para os filhos o legado de morrer em breve? Choro, escondo os soluços para que não ouçam. Sou todo medo. O que vou fazer diante desta peste que me dizima a esperança? A mulher põe as mãos no meu ombro:
o que te atingiu nestes dias?
Nada, talvez cansaço, precisamos de férias, vai dormir, amanhã o dia é cheio. Afasto de mim esta que me ama. O quanto deste amor resistirá quando souber que é véspera da sua viuvez? Por que acredito numa cigana? Em qualquer outro a premonição provocaria risos, chacotas de despreocupação. A razão me pede que esqueça, desconsidere o presságio, mas lá no fundo eu sei que morro em breve. Eu sei. Trinta e dois anos. É o que tenho, filhos, esposa, carro, casa: é o que tenho. Eu sei que não vou abandonar o que construí, o que sustenta minha vida sem sobressaltos. O destino fez de minhas mãos um livro. É o que tenho. Não vou sucumbir a isso. Precisam de mim. A mulher, os filhos, os muitos amigos, gostam de mim. Não vou morrer. Vou reescrever estas linhas, desdizer estes traços, livrar de mim este prognóstico macabro. Tenho trinta e dois anos, mulher, filhos, felicidade, não sou homem apto a carregar este livro. Não quero aprender a ler o que me escreveram os demônios, deus, ou outras invisibilidades mórbidas, travestidas em destino. Na pia do banheiro esfrego o quanto posso, até ter as palmas lisas. Brota o sangue e as linhas estão lá, parecem agora rios minúsculos desaguando em sangue os escritos do destino. Saio pela rua, esfregar as palmas até arrancar a pele, até que seja somente a carne, não adianta, vem de dentro as letras, estão enraizadas aos ossos das mãos. Arrancar a pele é paliar o inevitável: breve será o dia da minha morte. O que estou dizendo? Assumindo o que a boca da cigana me maldisse? Não, não chegará o dia em que aceitarei morrer jovem. Tenho filhos. Trinta e dois anos. Mulher. Família. Sou Feliz, está tudo lá dependendo do meu trabalho, do meu amor, da felicidade que lhes dou. Como agora encho o pensamento de aceitações? Nunca, não está em mim o perdedor. Manhã do terceiro dia, ainda estou vivo, ainda tenho tempo para desescrever o destino. Falto ao trabalho, gripe pior, atingiu meu filho, peço mais um dia. Dizem:
tudo bem. Não se preocupe, seguramos as pontas, saúde é importante.
Sempre fui exemplar. Não será agora na necessidade que me faltarão. Tenho a solução, vou apagar em mim os escritos do destino. Viverei muito, muitos anos e não morrerei breve. A cigana, crivada de enganos virá ver o quanto eu posso enganar o destino. Todos se admirarão de minha coragem, do meu amor pelos filhos, pela esposa, pela vida amiga de perfeição e felicidade que eu levo. Tenho trinta e dois anos. Muito futuro, muito a dar a todos, sou feliz, não sou compatível com os escritos do destino. Volto para casa meio-dia, comprei o necessário para erradicar de mim o que carrego. A casa está vazia, crianças na escola, mulher no trabalho, poderiam se assustar se vissem, não contei nada para eles, não sabem que morrerei em breve se não apagar em mim o que me escreveram. Tudo vazio, a garagem, a casa, a vida, o futuro, tudo vazio para que eu possa preencher de felicidade, depois que eu apagar o que o destino escreveu em mim. Na cabeça os martelos ainda soam: breve será o dia de tua morte. Ligo a serra comprada em uma loja de materiais para açougueiros. Estico as mãos em direção a lâmina. Mortas as linhas que me diziam morto. Nunca mais soarão os martelos. Nunca mais cigana alguma me lerá o destino.
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