Coluna de 23/7
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Paródia e Colagem no poema “Pero Vaz Caminha” de Oswald de Andrade
O Poema “Pero Vaz Camina”, de Oswald de Andrade, abre o capítulo inicial do livro “Pau-Brasil”. Ironicamente intitulado de “História do Brasil”, neste capítulo, Oswald resgatou uma série de textos clássicos da história brasileira e os atualizou, não só porque usou o humor corrosivo, mas porque conseguiu dar um tom minimalista a textos que são praticamente documentos históricos.
A paródia era um recurso muito usado pelos modernistas. No intuito de atacar, de confrontar a literatura vigente, Oswald recortava clássicos e lhes dava um choque de modernidade, para o crítico Haroldo de Campos (2002) os poemas parodísticos de Oswald “se convertem em cápsulas de poesia viva, dotadas de alta voltagem lírica ou saboroso tempero irônico”.
Campos (2002) chama a colagem proposta por Oswald de “ready made lingüístico” e diz que o “ready made contém em si, ao mesmo tempo, elementos de destruição e construção e de nova ordem”.
Analisando o poema “Pero Vaz Caminha” percebe-se estes elementos. Na primeira parte temos na Carta de Caminha:
“E assim seguimos nosso caminho, por este mar de longo, até que terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, topamos alguns sinais de terra, estando da dita Ilha -- segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670 léguas -- os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, e assim mesmo outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam furabuchos” Neste mesmo dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra!”
Oswald simplesmente resumiu esta parte do texto de Caminha, sem lhe alterar quase nada, apenas aboliu os excessos descritivos. Eis a sua primeira ironia: o que em Caminha era excesso, em Oswald tornou-se essência.
A DESCOBERTA
Seguimos nosso caminho por este mar de longo
Até a oitava da Páscoa
Topamos aves
E houvemos vista de terra
Na segunda parte do poema Oswald copia integralmente o texto de Caminha.
OS SELVAGENS
Mostraram-lhes uma galinha
Quase haviam medo dela
E não queriam pôr a mão
E depois a tomaram como espantados
Na Carta, encontramos:
“Mostraram-lhes uma galinha; quase tiveram medo dela, e não lhe queriam pôr a mão. Depois lhe pegaram, mas como espantados”
Penso que as pequenas divergências nos verbos devam-se à versão da Carta atualizada, pois corresponde a uma edição de 1963. De qualquer forma, aí vemos o ready-made em seu mais alto grau. De acordo com Roger Caillois ( apud Campos, 1999) é “na responsabilidade assumida pelo artista ao apor sua assinatura sobre não importa que objeto, executado ou não por ele, mas de que ele soberanamente se apropria, fazendo-o ser visto como obra capaz de provocar, ao mesmo título que quadro de um mestre, a emoção artística”. Assim, este recurso foi usado por Oswald de forma original e ousada, à sua época. Era uma transcrição da ‘certidão de nascimento' do Brasil, que ganhava a dimensão da poesia.
Na terceira parte do poema Oswald narra sinteticamente
PRIMEIRO CHÁ
Depois de dançarem
Diogo Dias
Fez o salto real
Na Carta, Caminha expõe a cena do seguinte modo:
Depois de dançarem fez ali muitas voltas ligeiras, andando no chão, e salto real, de que se eles espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo os segurou e afagou muito, tomavam logo uma esquiveza como de animais monteses, e foram-se para cima
Aqui, percebemos a primeira intervenção mais incisiva de Oswald. Nesta parte do poema, ele estava disposto a ridicularizar Diogo Dias, que segundo Caminha “é homem gracioso e de prazer”. A ironia vem pelo título: ‘primeiro chá' leva-nos a crer que este foi o primeiro intercurso físico que se deu entre portugueses e as índias. O ‘salto real' ganha aqui uma malícia típica em Oswald. O poeta foi além de copiar ou resumir Caminha e recontá-lo em forma de poema, deu sim um outro sentido ao escrito original. Neste caso, um sentido bem sexual, bem revelador da concupiscência marcante das nossas origens.
Por fim a maestria de Oswald em contraste com a inocência aparente de Caminha:
AS MENINAS DA GARE
Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha (OSWALD DE ANDRADE)
Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha. (CAMINHA)
Aqui, explode toda a sensualidade de Oswald, não só atualizando a figura das índias, que agora são ‘As Meninas da gare', mas também assumindo a malícia, a sexualidade explícita e sem culpa. O que em Caminha era seriedade narrativa, em Oswald se comporta como um riso: claro, sincero, de fácil identificação. Impossível não rir da ‘versão' do poeta, da aura de duplo sentido que ele colocou nesta colagem.
Oswald de Andrade inaugurou na poesia brasileira um novo caminho, um jeito coloquial, direto, bem humorado de dizer as coisas. Neste processo, ele também resgatou inúmeros clássicos da literatura brasileira e os refez, seja para dar um ar debochado ao poema intocável, seja para jogar sobre um clássico, como Canção do Exílio, uma roupagem mais moderna, mas sem perder a tristeza intrínseca ao poema original.
O universo poético de Oswald de Andrade, amparado na paródia, na colagem, na síntese e no poema piada subsidiou boa parte da poesia vinda depois. A imitação chegou quase à exaustão. Ainda hoje a poética de Oswald não é aceita por muitos. De acordo com Campos (1999) é que esta poesia não perdeu a “sua contundência, fruto de sua radicalidade”.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Oswald de. Pau-Brasil . 8 ed. São Paulo: Globo, 2002
CAMINHA, Pero Vaz de. Carta a El Rei D. Manuel . Disponível em < http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/carta.html > Acesso: 10 jul. 2006.
CAMINHA, Pero Vaz de. Carta a El Rei D. Manuel . Disponível em < http://www.biblio.com.br/Templates/perovazcaminha/molduraobras.htm > Acesso: 10 jul. 2006.
CAMPOS, Haroldo de. Uma poética da radicalidade . in ANDRADE, Oswald de. Pau-Brasil. 8 ed. São Paulo: Globo, 2002
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