COLUNA DE THATY  MARCONDES 

Atual Conselheira Municipal de Literatura (segunda gestão). Uma das idealizadoras do projeto POESIA DE PONTA (março/desde 2007). Selecionada através de concursos para participar de várias antologias, desde 1983. 1ª colocada no Concurso de Crônicas realizado pela ALCG em 2008. Homenageada com o Prêmio Anita Philipowski de 2009.

2ª quinzena de agosto de 2010 - Coluna 135
(Próxima coluna: 3/9/2010)


O espanhol e o português

            Não perco oportunidade de esclarecer minha origem e salientar o gênio “espanhol” de meus avós maternos. Saliento sempre que meu avô era um espanhol dos bons, dos turrões mesmo. Ao mesmo tempo era de uma grande lucidez, imparcialidade e bom humor, quando estava de maré boa. Idem minha avó que, exceções, quando estava nervosa (o que acontecia no máximo duas vezes ao ano) disparava um dialeto que pouca gente conseguia entender (autêntico espanhoguês de raiz...).

            Em certa época de suas vidas, costumavam passar alguns meses na Praia Grande, numa pequena casa de uma de suas filhas. Meu avô curtindo sol, adivinhando o cheiro do vento, fazendo previsões de chuva e apreciando a vista do mar. Minha avó, sempre companheira, preferia mesmo ouvir a missa no rádio, a prosa esporádica com alguma vizinha ou ficava simplesmente se deliciando com laranjas – às vezes uma baciada delas.

            Nesse ir e vir, após algumas temporadas aproveitando o intervalo entre inverno e verão, época de temperatura amena, eles fizeram amizade com um casal de portugueses oriundos do ABC paulista, que visitavam o local em quase idênticas condições: mesma faixa etária, predileção pela época de calor moderado, casa de filho, entre outras coincidências que os aproximou. Eram duas Marias: uma espanhola e uma portuguesa, e dois Manuéis: um espanhol e outro português. Meu avô, dono de um humor irônico e por vezes sarcástico, tinha tiradas inteligentes e ferinas, nem sempre apreciadas ou entendidas pelo xará português. Já as Marias se entendiam sempre, conversando sobre temas amenos como filhos e netos, receitas, tricô, remédios e ungüentos, religião – rezavam de terço à mão em três horários fixos e diariamente seguidos à risca: seis da manhã, meio dia e seis da tarde.

            Meu avô achava graça de algumas expressões idiomáticas do seu xará português. Sempre contava que demorou a entender quando, num dos reencontros anuais com o vizinho eventual, este reclamava muito da geladeira que não funcionava direito e resolveu explicar em minúcias suas tentativas de reabilitação do eletrodoméstico. E aquele assunto rendeu dias de uma prosa enfadonha. O Manuel português trocou borracha, deu carga de gás, verificou tomada, fez de tudo até que se deu por vencido e, num último recurso, tirou o motor da geladeira e resolveu retificá-lo, se possível ainda fosse. Nenhuma das premissas resultou vitória ou conserto. Após uma semana de luta inglória, absolutamente rendido, declarou: “A geladeira pairou...”, e diante da expressão de espanto e não entendimento do xará espanhol, explicou: “Não há mais esperanças para essa cretina dessa porcaria. Resta-me jogá-la ao lixo e providenciar outra, pois”. E saiu furioso, em seu velho carrinho, dirigindo até o centro da vila de pescadores, na esperança de conseguir comprar algo semelhante que funcionasse e aliviasse o casal de perder todo o conteúdo de alimentos por conta do calor que, justamente naquele ano, resolveu ser mais forte.

            O Manuel espanhol adorava contar esse episódio, rindo muito da expressão “pairou” (parou), como se esse simples verbo resumisse tudo, toda a trajetória de tentativas de salvar a moribunda traiçoeira geladeira e sua total derrota.

            Mas o pior ainda estava por vir. Passados uns dois anos, o casal espanhol aproveitava uma brisa amena no terraço da pequena casa, quando avistou o velho automóvel (uma Parati azul metálica) do amigo português.  E, para seu espanto, chegou sozinho, sem sua Maria portuguesa, com certeza.

            Apressou-se o Manuel espanhol a cumprimentar o xará português e auxiliá-lo na acomodação da bagagem. Como o Manuel português nada dissesse sobre sua esposa, meu avô viu-se obrigado a perguntar, ao que o português respondeu prontamente:

            — Minha Maria, meu amigo, pairou. Teve um ataque do coração e de uma vez só, num último suspiro, quedou-se ao chão, completamente morta.”


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