"POETICIDADES E OUTRAS FALAS"
RUBENS DA CUNHA


Reside em Joinville, SC. Autor de "Campo Avesso" e "Visitações do Humano". Acadêmico de Letras. Escreve semanalmente no Jornal A Notícia e coordena o Grupo de Poetas Zaragata. Na Web tem o e-book: "A busca entre o vazio", disponível para download,
na URL: <http://www.arcosonline.com/index.php?option=content&task=view&id=146&Itemid=>.
Blog "Casa de Paragens": <www.casadeparagens.blogspot.com>.

Coluna de 9/9
(próxima coluna: 23/9)


RIMBAUD E CLARICE: CAÇADORES DO IMPOSSÍVEL

            “Eu é um outro”: foi com falas como essa que Arthur Rimbaud redirecionou os caminhos da poesia e ainda hoje se mantém como um dos autores mais modernos que existem.
             Ser “outro” é uma das vontades humanas mais arraigadas e antigas, é também a nossa grande impossibilidade. Rimbaud foi um caçador que se tocaiou, durante algum tempo, na tentativa de conseguir um poema que fosse além do seu corpo, que produzisse mais que alma, morte ou poesia, Rimbaud queria um poema impossível. Desistiu muito jovem da empreitada, mas o que produziu deixou marcas indeléveis na história da literatura.
            Nunca saberemos exatamente como o outro nos enxerga. Tudo que vem do “outro” é filtrado pelo “eu”. Por mais que as palavras de Rimbaud nos dêem argumentos para vôos imaginários, nos permitindo uma reflexão sobre nossas múltiplas faces, nossas múltiplas escolhas, estaremos sempre na jaula de nós mesmos. O mais próximo que nos vemos, como os outros nos vêem, é no contrário dos espelhos. Não ajuda muito este rascunho invertido da realidade.
            Depois de Rimbaud tentar caçar o impossível e subverter o pensamento da época em que viveu, surge Clarice Lispector colocando mais mistério na fala do poeta, quando ela, aparentemente, o resume: “Eu é”.
            Se com Rimbaud nos transferimos para o outro, seja para não sermos nós mesmos, seja para nos olharmos de fora por algum tempo, num jogo quase infantil de imaginação ou num daqueles exercícios místicos de “viagem fora do corpo”, com Clarice nos aceitamos, nos incorporamos do “é”, esta grande palavra, que apesar de formada por uma letra, carrega uma gama de significados quase inexpugnável. (Por isso, Clarice considerava a palavra ‘é' como a mais importante da nossa língua), pois se trata de uma palavra que nos contém, que nos sentencia à não-fuga, à não-tentativa de buscarmos horizontes além das fronteiras do nosso corpo ou espírito.
            Clarice era também uma caçadora, como Rimbaud, mas diferente dele, ela caçava outro impossível: a aceitação plena do que somos, a essência humana sem passado ou futuro, ela queria mesmo era se apossar do “é da coisa”, queria ser uma pessoa na completude do presente, sem espaços vazios. Clarice queria ser sólida.
            A obras destes caçadores do impossível são vastas e permitem, a cada leitura, novas interpretações, novos atalhos transformadores.
            São dois autores rotulados de enigmáticos porque inventaram uma literatura enquanto tentavam entender o humano. São antagônicos e se completam: Arthur Rimbaud fugindo pra longe de si mesmo, gritando: “Eu é um outro”; Clarice Lispector se despedindo do lado de fora e segredando a cada um dos seus leitores: “Eu é”.

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