Coluna de 9/10
(próxima coluna: 23/10)
A Tentação Perguntadora
De Lygia Bojunga Nunes li três livros: “O Abraço”, “Meu Amigo Pintor” e “Seis vezes Lucas”. São livros realistas, sem a presença de outras marcas que caracterizam a autora: o uso de elementos fantásticos e a personificação sem nenhum limite ou barreira racional entre o humano e o inumano.
Esses três livros trazem em seu bojo temas aparentemente distanciados do mundo infantil: suicídio, estupro e o mundo adulto repleto de ciúmes e adultérios visto por uma criança.
O tratamento que a autora dá a estes três enredos é um olhar sem concessões. Não existe aquela atitude bastante profícua em adultos de edulcorar a realidade para ‘proteger' a criança, nem a ‘moral educativa' no final, alias, finais são coisas inexistentes nestes três livros. Eles dão a nítida impressão de continuidade depois do ponto final.
Os livros possuem narrativas complexas, pouco lineares. Em “Meu amigo pintor” um garoto busca explicações do porquê seu amigo pintor se suicidou. Narrado em primeira pessoa, ficamos com este menino e sua busca por respostas durante alguns dias. O garoto vai colhendo migalhas no lugar de respostas claras e constrói, a partir de suas observações, não uma resposta mas a aceitação do fato irremediável que é a morte. Em “Seis Vezes Lucas” percorremos seis momentos de Lucas. Desta vez o narrador é em terceira pessoa que acompanha Lucas em sua tentativa de ser visto pelos pais ao mesmo tempo em que tenta entende-los. No livro “O Abraço” a narrativa fragmentada em primeira pessoa faz o leitor percorrer os dentros acidentados de Cristina/Clarice, a complexa e trágica protagonista.
O que se percebe na escrita de Lygia é a ‘aura' poética que ela imprime em seus textos e, principalmente, nos personagens. Lygia cria ambientes pesados demais e os joga sobre as costas dos personagens, faz com que eles transitem entre o mundo interno - não são poucos os mergulhos em sonhos, imaginações, quase delírios - e o mundo real com seus ataques de indiferença e hipocrisia.
Algumas escolhas que a autora fez para a escrita destes três livros são interessantes, outras soam repetitivas.
A escolha mais interessante é a não linearidade. O tempo é desrespeitado em sua cronologia natural, temos saltos, retornos, memórias que são postas na frente de outras. O melhor exemplo disso é “O Abraço” nitidamente um livro de memórias, em que a personagem adulta busca nas lembranças maneiras de expiar seu drama. Em “Meu amigo pintor” apesar da linha do tempo visível dividindo os capítulos, há idas e vindas propostas pelo personagem-narrador.
Trabalhando estes temas complexos e criando narrativas de forte cunho psicológico, Lygia prevê um leitor elaborado, capaz de agüentar os entraves que sua narrativa propõe.
Uma das escolhas da autora que me soa muito repetitiva é a insistência em colocar seus personagens tendo catarse com algum momento artístico. As artes para Lygia funcionam como sessões de psicanálise. Em “Meu amigo Pintor” há uma cena/sonho de teatro semelhante à cena/sonho de teatro em “Seis Vezes Lucas”. Em “O Abraço” um espetáculo de circo leva a personagem a uma guinada definitiva, além de ser uma leitura/dramatização de um conto o fator que fez a personagem confessar seu drama.
Autores renomados trabalham com temas fixos: Hilda Hilst construiu sua obra sobre o tripé sexo/Deus/morte, Clarice Lispector na busca pelo “é da coisa”, Kafka expôs continuadamente o absurdo humano. Em Lygia não é diferente, ela faz com que seus personagens enfrentem medos, angústias e se enfrentem motivados pela arte, seja como consumidores, seja como fazedores. O que torna esta escolha arriscada ou repetitiva é a tendência de dar à arte função terapêutica. Seria Lygia Bojunga Nunes capaz de construir um personagem que não tivesse afinidades com arte nenhuma, mas que fosse intensamente profundo em seus conflitos?
Outro ponto: ou eu conheço as crianças erradas ou sou um cego mesmo, mas os meninos de “Seis vezes Lucas” e “Meu Amigo Pintor” me pareceram, em determinados momentos, artificiais. Eu gostei deles, estão bem construídos, só que às vezes a “voz-lygia” fica muito visível na sua vontade de criticar a indiferença, a hipocrisia familiar. Os personagens deixam de ser crianças e se tornam mini-adultos com crise existencial. Quanto à personagem ‘adulta' de “O Abraço” que vai se esfacelando num ressuscitar de memórias que me pareceu limitada ao perigoso rótulo em que Lygia se encaixa: o de escritora infanto-juvenil.
Li os três livros desprovido do rótulo o máximo que pude, mas ele retumba forte na escrita de Lygia, gerando em mim uma inquietação. Tentarei explicar: Lygia é uma escritora que construiu uma carreira vitoriosa sob o manto do infanto-juvenil. Nestes livros ela trouxe temas espinhosos para os limites do ‘infanto-juvenil' gerando um contraste que numa primeira leitura soa moderno, ousado, diferente do que estamos acostumados. Só que lá dentro da minha cabeça grita uma tentação-perguntadora: “o quanto esses limites coíbem a escrita de Lygia quando ela transita suas histórias pela “realidade”?”
Acho que vou perguntar para o Vítor ou para o Pavão. Quem sabe eles possam me dizer umas coisinhas a respeito?
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