Coluna de 23/10
(próxima coluna: 9/11)
A idealização nas palestras de Marina Colasanti e Afonso Romano Sant'Anna
Tidos como dois dos principais escritores brasileiros contemporâneos, Marina Colasanti e Afonso Romano de Sant'Anna compõe uma destas idealizações da vida: são inteligentes, bem sucedidos, aparentemente se amam e se respeitam e venceram profissionalmente no pantanoso terreno da literatura de qualidade.
Os dois fizeram palestras individuais nos Seminário dos estudos da linguagem /PROLER 2006, evento promovido pela Universidade da Região de Joinville. O gênero palestra não se altera muito: a fala de uma pessoa concentra a atenção de várias outras. Vai do formal, com leituras e explicações dos textos lidos ao improviso coloquial de acordo com o momento do palestrante ou a ‘energia' do público presente.
Marina veio expor sua experiência enquanto leitora. “Quebrando” o protocolo, sentou-se na mesa e discursou livremente sobre sua história com a leitura. Voz calma de contadora de histórias, usou do bom humor aliado à emoção para encantar a platéia de admiradores. Marina é uma sedutora, vende fácil a idéia de encantamento. Os ouvintes mergulham em seu enredo feito de uma fala coloquial para ser entendida por todos mas adequadamente poética para ser sentida também pelos poros.
Não estamos diante de uma historiadora ou de uma cientista, mas diante de uma fazedora de estórias, na acepção de Guimarães Rosa, quase mítica, quase infantil ainda. Nada de academicismos, ouvir Marina é entregar-se ao relato de uma vida que deu certo em muitos aspectos. Com amplo domínio de sua mensagem, no que se refere à biografia, em determinado momento narrou uma fábula. Sai a Marina do improviso, da memória salteada pelas coisas interessantes e entra a Marina atriz. Continua, no entanto, a Marina bruxa hipnotizadora de seus ouvintes que já não fazem muita distinção entre a narrativa da fábula e o que ouviram anteriormente.
Ela falou de sua vida real: o amor declarado e mantido pelo marido; a publicação contínua de livros em diversos formatos; as viagens, o processo criativo, o fato de gostar muito do que escreveu e escreve, a leitura, a julgar pelos exemplos, em várias línguas; tudo entremeado pela poesia contundente de sua fala-escrita e pelas marcas de seu discurso que explicitam que a sua vida parece uma exceção. Até quando relembrou de um problema doméstico soou como algo artístico, literário. Foi com consciência total de sua palavra que Marina palestrou. O gênero usado por ela estava influenciado por aspectos poetizados por Afonso em Mitos e Ritos:
“Minha mulher
tem outra mulher com várias mulheres sob a pele.
Tecelãs, pastoras, princesas
afloram de seus lábios e cabelos” (...)
E por falar em Afonso Romano Sant'Anna ele também é um sedutor. Não tão informal quanto a esposa, Afonso posta-se sentado no lugar esperado e começa a discursar sobre a força da poesia na vida humana. Relatando aspectos históricos, sociológicos, culturais em que a poesia serviu e serve de base, Afonso terminava seu raciocínio reiterando ironicamente “tudo isso, porque a poesia não serve para nada”. Dentro do gênero palestra, temos na fala do poeta uma organização mais cronológica, mais expositiva, apesar da inadequação de seu discurso, sobretudo no que se refere às suas viagens: Egito, Marrocos, Londres, Paris, parecem lugares fáceis e baratos de se chegar. Afonso não adequou seu discurso a realidade das provincianas professoras presentes. Mas por outro lado convenceu muito as mulheres com seu louvor à madurez feminina, sua fala romântica de guardião de sonho, todo seu charme de poeta culto, maduro, apaixonado. Da mesma forma que Marina, o discurso de Afonso dentro do gênero palestra transita por um mundo poeticamente perfeito, feito de encantamento e sensibilidade, não há menção ao cotidiano, às pequenas agruras que todos sofrem, tudo fica na idealização da vida. A fala escolhida por Afonso para ministrar sua palestra, muito mais do que desmistificar a existência, corrobora a idéia de que o mundo poético é paralelo ao mundo real. Diante do que ele expôs, da imagem que ele vendeu de si, de sua arte e família não há muita diferença quando ele vende este mundo em outro gênero: o poema.
CENA FAMILIAR
Densa e doce paz na semiluz da sala.
Na poltrona, enroscada e absorta, uma filha
desenha patos e flores.
Sobre o couro, no chão, a outra viaja silenciosa nas
artimanhas do espião.
Ao pé da lareira a mulher se ilumina numa gravura
flamenga, desenhando, bordando pontos de paz.
Da mesa as contemplo e anoto a felicidade
que transborda da moldura do poema.
A sopa fumegante sobre a mesa, vinhos e queijos,
relembranças de viagens e a lareira acesa.
Esta casa na neblina, ancorada entre pinheiros,
é uma nave iluminada.
Um oboé de Mozart torna densa a eternidade.
Referência:
SANT'ANNA. Afonso Romano de. Intervalo Amoroso. Porto Alegre: L & PM Pocket, 1999.
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