Coluna de 9/12
(próxima coluna: 23/12)
Anos 70. Morro do Jacu. Araquari – SC.
Um menino chama a mãe no quarto dos fundos e pergunta:
— E essa, mãe?
A mãe olhava umas letras feitas com semente de um cipó chamado coronha e dizia:
— Essa palavra não dá pra ler, precisa vogal no meio: a, e, i, o, u
Lá ia o menino inventar outra palavra e chamar a mãe para ler de novo até que conseguisse montar uma que fizesse sentido.
Trinta anos depois, e esta é a primeira lembrança que tenho do ato de ler e escrever. Minha alfabetização começou assim, pelas sementes. Depois veio um livro: uma cartilha, não consigo lembrar do nome, apenas sei que não era a clássica “Caminho Suave”. B de bola, P de pato, T de tatu. Cheguei à primeira série já sabendo ler. Já sabendo que dentro de um livro havia um mundo a ser partilhado. E também havia os outdoors. Vinha para Joinville lendo cada um deles em voz alta. Fazendo a alegria de meus pais. Ainda hoje mantenho o hábito de lê-los, sobretudo os da BR 101, quando faço o retorno aos caminhos da infância.
Depois, na quarta-série, o governo disponibilizou para as escolas um programa chamado “Ciranda de Livros”. Os livros ficavam pregados na parede dentro de um recipiente plástico. Aluno de escola isolada, sempre fui de natureza solitária. A “Ciranda de Livros” se tornou meu universo lúdico, junto com o passatempo pouco ecológico de achar ninhos de passarinhos para colecionar ovos.
A família que não tinha o hábito de ler literatura me acompanhava com certo distanciamento e cuidado. Várias vezes minha mãe mandava largar os livros e fazer algo mais ‘normal'. Nunca me venceram.
Ginásio. Escola básica São Pedro. Guamiranga, Guaramirim. SC. Para estudar, mudei para a casa da minha avó, que ficava no Poço Grande, em Guaramirim, um lugar mais ‘desenvolvido' que o Morro do Jacu, ainda era sítio, mas passava ônibus. A escola tinha uma biblioteca que foi devidamente investigada por mim nos quatro anos de ginásio.
Novamente, fiz tudo sozinho, não havia programas de incentivo à leitura na escola, tanto alunos quanto professores. Minha relação de leitor se construía em solidão. À medida que os pêlos pubianos cresceram, a solidão aumentou e os mergulhos nos livros ficaram mais fundos e longos. Desta vez, eram romances, contos de aventura, muita cultura de massa. Deslembro de títulos, autores, apenas sei que fui um adolescente submergido nas páginas, nas palavras.
Segundo grau. Joinville. Primeiro ano. Colégio Celso Ramos. Deve ter sido horrível pois não há nenhuma lembrança, seja de aluno ou professor ou leitura, que me tenha ficado.
Segundo e terceiro anos. CIS. Contabilidade. A partir daí começou uma série de escolhas que, para não ser muito cruel comigo, vou chamá-las de equivocadas. Fiz contabilidade. Enquanto vagava sobre números e balancetes, compensava meus dias com Clarice Lispector e Cora Coralina.
Um ano parado.
Faculdade de Comercio exterior. Os equívocos continuam. Agora era a biblioteca da Univille. A poesia germinava no eu-leitor e no eu-escritor.
Finda a faculdade, alguns anos sem estudar academicamente. A leitura se tornou um hábito recorrente. Aqui preferência total para a leitura literária. Surgiu o envolvimento com a escrita. A descoberta de que eu poderia ser um daqueles a quem tanto admirava. Vi duas poetas amigas se formando em letras e disse a mim mesmo: agora eu vou, agora eu paro de me equivocar. Comecei letras e a partir disso, passei a pensar a leitura como elemento de ensino, como parte do processo de educação. Tenho lido alguns textos interessantes, idéias possíveis e impossíveis. Quando eu for para a sala, naquele ineditismo-sempre que é a sala, vou levar minha paixão exacerbada pelo livro como ferramenta principal.
Sempre fui um leitor forjado na exceção: família sem hábito; educação fundamental e ensino médio sem incentivo explícito; primeira faculdade cujo foco nunca esteve na leitura. Enfim, a leitura sempre me foi algo para suportar o peso do mundo e mesmo que Drummond tenha dito que. “ele não pesa mais que mão de uma criança”, a mim, o garoto que aprendeu a ler e escrever com sementes, num espaço sem energia elétrica, sem urbanidade, o mundo sempre foi um peso beirando o insuportável. Ainda hoje é.
Talvez esta participação efetiva no time da minoria leitora tenha me dado um certo desencanto frente ao mundo, mas, ao mesmo tempo, me concedeu muita força para ajudar aqueles que eu, porventura, perceba como meus iguais.
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