COLUNA DE THATY  MARCONDES 
Na área empresarial, trabalhou na implantação de projetos de administração, captação e aplicação de recursos, e ainda em redação e revisão de textos técnicos. Nascida em Jundiaí, reside atualmente em Ponta Grossa/PR, onde exerce o cargo de Conselheira Municipal da Cultura.

2ª quinzena de janeiro - Coluna 82
(Próxima coluna: 3/2/2007)

Sapatos vermelhos

Eu tentei entrar no quarto, na madrugada silenciosa, mas você tinha trancado o espelho. A cama suspirava levitando no meio do cômodo e as roupas dançavam ao som da chuva de verão noturno. Naquele ambiente de luz verde, adivinhei por trás da cortina as estrelas que cintilavam seus tons lilases pipocando aqui e ali, qual pequenos raios em prenúncio de tempestades.
Tudo colaborava a configuração de um sonho dúbio, entre pesadelo e quimera, tamanha estranheza de inúmeros fatos. Não, eu não estava alterada. Nenhuma bebida, cigarro estranho, nada disso. Talvez estivesse em alfa, em Vênus, em Júpiter – meu planeta regente -, ou até mesmo em Marrakesh, papo aranha que nem arranha mais, nos dias de hoje.
Entrei pela colcha da janela, procurei por você no guarda-roupa, nas gavetas, até mesmo em baixo da almofada da cadeira de balanço que tremia de felicidade ante o espetáculo da cena surreal. Foi então que vi a mala. No canto, enviesada, a mala vermelha. Tão velha, surrada e suja, que para ver seu rosto, tive que espaná-la com meus cabelos. Ela então se abriu em sorrisos, e colocou sobre seu corpo um par de sapatos igualmente vermelhos. Eles aplaudiram a recente liberdade, a companhia dos demais objetos, a festa instaurada no quarto, e começaram a dançar. Não um balé clássico, pois não se tratava de sapatilhas, nem pertenciam a uma bailarina. Dançaram ao som da luminária, que assobiou de ópera a tango, entoou de valsas a sambas. E o par de sapatos acompanhava tudo, flertando uma piscada pra mala, feliz com a brincadeira de “você não me pega”. Cirandei com eles, calçados em minhas mãos, no meio da roda, em rimas cantei, um réquiem para nosso amor, em despedida declamei, a voz trêmula, sem lágrimas, com a mão beijei meu príncipe e ele de novo agora é sapo.
A mala continua no canto do quarto. Dentro, um segredo guardei. Os sapatos descansam sobre ela. Em silêncio, a festa guardada na mala, pros meus momentos de tédio e pra alegria dos seus velhos sapatos vermelhos.


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