"POETICIDADES E OUTRAS FALAS"
RUBENS DA CUNHA


Reside em Joinville, SC. Autor de "Campo Avesso" e "Visitações do Humano". Acadêmico de Letras. Escreve semanalmente no Jornal A Notícia e coordena o Grupo de Poetas Zaragata. Na Web tem o e-book: "A busca entre o vazio", disponível para download,
na URL: <http://www.arcosonline.com/index.php?option=content&task=view&id=146&Itemid=>.
Blog "Casa de Paragens": <www.casadeparagens.blogspot.com>.

Coluna de 23/12
(próxima coluna: 9/1/2007)

Análise do conto “Paulo” de Graciliano Ramos, sob a perspectiva dialógica de Bakhtin

               O conto “Paulo” de Graciliano Ramos expõe um personagem preso num corpo falido. O discurso em primeira pessoa faz com que o personagem se remeta a si mesmo, aos presentes no quarto onde convalesce (crianças, a esposa, os médicos), ao leitor como sendo um ouvinte privilegiado, e a Paulo, a personificação de sua doença, uma espécie de metade assassina que lhe danifica, lhe prende à cama.
                O discurso do narrador se altera de acordo com seu possível interlocutor. Seguindo as idéias de Bakhtin (1981 p. 173) podemos perceber em “Paulo” a presença de um discurso do tipo ativo, “em que o discurso do outro influencia de fora para dentro: são possíveis formas sumamente variadas de inter-relação com a palavra do outro e variados graus de sua influência deformante”.
                O conto começa com uma descrição crua: “pedaços de algodão e gaze amarelos de pus enchem o balde.”. Essa é a primeira informação que o narrador-personagem dá ao leitor. Em seguida já direciona sua voz não mais ao leitor, mas às crianças presentes no quarto, ou aos seus responsáveis, na tentativa de expulsá-las dali. O discurso dialógico do personagem-narrador se molda neste jogo entre a exposição de sua condição de doente terminal e a tentativa desesperada de dialogar com os presentes na cena, sejam reais, sejam produtos da imaginação.
                Assim temos a “polêmica velada” em que o discurso fala sobre o objeto e também ataca outro discurso que esteja se referindo ao mesmo objeto. Por diversas vezes o personagem-narrrador tenta romper a barreira da impossibilidade física e tenta se comunicar com a esposa: “se pudesse, diria qualquer coisa à figura alvacenta, que tem agora as feições de minha mulher” “(...) Lamento-me, injurio a criatura solícita que se chega à cama. Por que me olha com olhos de mal-assombrado?”
                Durante todo o texto a deterioração do corpo é exposta. Para suportá-la o narrador começa a criar fugas da realidade. Assim, temos um discurso que se amplia. O personagem-narrador cria uma personificação para a doença que o mata: Paulo. Ao mesmo tempo em que percebe este outro individuo como alguém poderoso, que inutilizou seu lado direito, o discurso do personagem-narrador é alterado devido à presença racional da esposa: “Absurdo imaginar um indivíduo preso a mim, (...). Arrependo-me de ter revelado a existência do intruso. Certamente minha mulher via afligir-se com a loucura que me persegue”.
                A partir desta personificação, o discurso do personagem-narrador se bifurca entre assumir o delírio e escondê-lo. Uma forma de agüentar o peso é estabelecer pontes com sua vida pregressa e com uma possível vida futura. Passa a falar consigo mesmo, seja para lembrar quem foi: “sujeito aperreado por trabalhos maçadores” homem que “andava pra cima e para baixo, como uma barata. Nunca estava em casa Recolhia-se cedo, mas o pensamento corria longe, fazia voltas em redor de negócios desagradáveis”, seja, num laivo de esperança, projetar-se no futuro como ser saudável: “Entrarei nos cafés, conversarei sobre política. Uma, duas vezes por semana, irei com minha mulher ao cinema”.
                Avançando em sua dor, o personagem começa a estabelecer diálogo com o indivíduo-doença colado nele: “O homem que se apoderou do meu lado direito não tem cara e ordinariamente é silencioso. Mas incomoda-me. Defendo-me, grito palavrões, e o sem vergonha escuta-me com um sorriso falso, um sorriso impossível, porque ele não tem boca”.
                Novamente a polêmica velada se estabelece. Paulo nada diz, mas modifica, comanda o discurso do narrador, que retoma sua tentativa de diálogo com a esposa: “mastiguei uns nomes que minha mulher não entendeu, queixei-me do médico e de Paulo”, para logo em seguida voltar-se ao leitor: “Certamente as criaturas que me cercam embruteceram, são como as crianças que estiveram correndo no chão lavado a petróleo”.
                No momento final, o personagem narrador estabelece uma tentativa desesperada de diálogo com Paulo, retomando partes de seus discursos anteriores. “Não conheço Paulo. Tento explicar-lhe que não o conheço, que ele não tem motivo para matar-me. Nunca lhe fiz mal, passei a vida ocupado em trabalhos difíceis, caindo, levantando-me, Cansado. Peço-lhe que me deixe, balbucio súplicas nojentas. Não lhe quero mal, não o conheço”, para logo em seguida desmentir-se, deixar Paulo de lado e dialogar consigo mesmo, dizendo a verdade: “Mentira. Sempre vivemos juntos. Desejo que me operem e me livrem dele”. No momento final, a junção, a aceitação, a voz-muda de Paulo finalizando tudo; “Curva-se, olha-me sem olhos, espalha em roda um sorriso repugnante e viscoso que treme no ar. (...) O punhal revolve a chaga que me mata.

               Podemos concluir que a insignificância física perante a doença; a fragilidade do corpo; a ausência de uma perspectiva pós-morte são alguns elementos visualizados no discurso do personagem-narrador e que compõem a idéia do autor sobre a vida em si. A degradação é inevitável, bem como, infrutífera, toda tentativa de contê-la,. O corpo humano é um objeto que se degenera muito fácil.
                O discurso do personagem narrador, seja em suas buscas de comunicação com o real, seja em sua exposição direta ao leitor, concentra-se por este viés. Paulo, a doença-indivíduo é uma anestesia, tanto quanto as idas ao passado e as perspectivas de futuro estabelecidas pelo personagem. Interessante notar que estas perspectivas de futuro nunca atravessaram a vida física, ficaram sempre no âmbito da saúde, do divertimento mundano. Outro ponto a ser ressaltado é que o personagem não se entrega a arrependimentos, sentimentalismos, fica num plano de frieza diante da situação, e se tenta mudar, sair, é mais para sanar o desconforto a que está submetido do que por qualquer preceito religioso ou moral. O personagem do conto “Paulo” está diretamente, biologicamente ligado à vida física, não propõe embates espirituais, tão próprios à sua condição.
                Talvez por isso, o discurso do narrador tenha exposto tanto a dor física, as secreções, o desmoronamento das carnes, ossos, músculos. Talvez por isso tanta fé em uma cirurgia que separaria a metade boa da metade podre: o homem racional, decente, do “intruso”, da “pessoa achacada”, do delírio.
                Todo o discurso do personagem, em todos os seus âmbitos refletem este conceito da vida como matéria: suporte perecível que carrega uma consciência. Findo o suporte, finda a consciência.

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Referências

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski . Ed Forense. 1981
RAMOS, Graciliano. Insônia . 13ª ed. Rio/São Paulo. Record. 1977

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