"POETICIDADES E OUTRAS FALAS"
RUBENS DA CUNHA


Reside em Joinville, SC. Autor de "Campo Avesso" e "Visitações do Humano". Acadêmico de Letras. Escreve semanalmente no Jornal A Notícia e coordena o Grupo de Poetas Zaragata. Na Web tem o e-book: "A busca entre o vazio", disponível para download,
na URL: <http://www.arcosonline.com/index.php?option=content&task=view&id=146&Itemid=>.
Blog "Casa de Paragens": <www.casadeparagens.blogspot.com>.

Coluna de 9/1/2007
(próxima coluna: 23/1)

O ano novo de novo

                Por não agüentarmos o infinito, envasilhamos o tempo em potes e vamos colocando um dentro do outro: segundos, minutos, horas, dias, meses. Velha ilusão humana de visão e controle do tempo. A cada final de ano é como se a despensa estivesse cheia e precisássemos limpar tudo, para recomeçar uma nova armazenagem.
                O pote que chamamos dezembro é um dos mais intensos nos lados ocidentais da terra, além do peso mítico do natal, há o peso festivo do reveillon. É um tempo de rituais, de regamento da esperança. Casas são pintadas, muros refeitos, jardins arrumados. Cantos em desuso ganham nova luz, guardados antigos passam por uma reciclagem, o velho provérbio “quem guarda, tem” sofre algumas baixas. Por dentro, na alma, também fazemos limpezas, redecorações, pequenos retoques, que pelo menos no plano teórico, nos sustentam para mais um período em que guardaremos os potes um dentro do outro, até que a despensa fique cheia novamente.
                Sendo o futuro inexoravelmente imprevisível, este espírito de fim/começo de ano reafirma que precisamos nos ater em símbolos para enfrentarmos o ineditismo do destino. Por outro lado, nestes tempos de máquina, tudo está se tornando artificial, perigosamente obrigatório. Há uma condenação implícita em muitos, quando alguém arrisca um “não ligo pra ano novo”, “é sempre a mesma coisa”, pronto, temos aí um rebelde, um ser ordinário que não respeita o valor quase religioso da celebração do ano novo. Estamos vivendo nos perigosos anos do “politicamente correto”, destoar da ordem estabelecida pode gerar alguns atrapalhos. Apesar de estarmos embebidos com o “feliz natal” e “próspero ano novo” podemos ser bem ranzinzas com aqueles que não manifestam o mesmo encantamento por rituais, especialmente estes de “recomeços”.
                O mais divertido (e inquietante) disso tudo, é que estabelecemos um dia (e apenas um dia) para repetir uma série de inutilidades: pular ondas, vestir-se de branco, comer carne de porco porque ele fuça pra frente e não comer carne de galinha porque ela cisca pra trás. Um dia para trocas efusivas de promessas e desejos. E fogos de artifícios, que os olhos precisam muito desta beleza rápida e barulhenta. Neste momento o tempo não existe, estamos livres de guardá-lo em potes. É uma noite apenas, átimo, por isso podemos nos refestelar em superstições ou em promessas feitas ao vento, ao mar, aos santos, ao amor, a quem aparecer na nossa frente, sem que tenhamos depois que carregar o fardo do descumprimento da palavra. O que é dito na noite de ano novo serve para a noite de ano novo. Se for cumprido durante o resto do ano, tanto melhor, mas se for esquecido já na primeira segunda-feira útil, não haverá castigo nenhum nisso. Continuaremos guardando o tempo dentro dos potes e talhando planos para os próximos poucos instantes em que tiraremos férias deste serviço ingrato.

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