JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida e O silêncio do delator, que acaba de obter o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL. Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor e conheça a poesia do colunista, cujo CD agora tem opção de download. Site: http://www.neumanne.com
Colunas de 10/8
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O resgate da mulher sob o mito
Para os brasileiros de minha geração, Carmen Miranda não era uma grande cantora nem uma bela mulher, mas um porta-turbante com abacaxi na cabeça e o símbolo ambulante (e ululante) do exotismo tropical nos EUA. À força de uma imagem deturpada pelo preconceito e pela má vontade, ela passou para a posteridade como uma espécie de signo extremado da vulgaridade estereotipada do que os americanos do Norte achavam que poderiam ser os primitivos habitantes do inóspito território selvagem abaixo da linha do Equador, além do qual tudo seria permitido.
O escritor carioca Ruy Castro teve sensibilidade, delicadeza e talento de sobra para remover todas essas cascas de grosseria e miopia para reconstruir com graça e sutileza a imagem do que ela realmente foi: a garota carioca, linda, descontraída e liberal, embora nascida no interior de Portugal; a maior de todas as nossas cantoras do rádio; e, finalmente, a milionária e generosa estrela de Hollywood, que morreu precocemente sem ter podido realizar seu sonho de ser uma mãe de família, como havia sido a sua. A imagem, que ela mesma inventou e da qual se tornou súdita, terminou por ocultar, com a ajuda implacável do tempo, da distância e da ignorância de críticos mal humorados, sua beleza física, soterrada sob peças de roupas de baiana; sua importância capital para a fixação dos anos dourados do samba; e o valor demonstrado pelo sucesso alcançado no show business americano por uma “brasileirinha” de porte físico ínfimo, que se tornaria estrela num céu de arianos altos, espadaúdos e musculosos.
Fôlego e elegância - O biógrafo de Mané Garrincha e historiador da Bossa Nova fez uma pesquisa de fôlego e a apresentou com o texto elegante de hábito, esmiuçando cada detalhe da vida e da obra de uma artista incomum, não apenas por seu engenho e arte, mas também por sua personalidade muito especial. A Carmen que emerge das linhas de Ruy Castro é uma garota de Ipanema avant-la-lettre: na década de 20: mantinha relações sexuais com os namorados e, embora sonhasse casar-se com algum deles e ter uma penca de filhos, jamais permitiu que tal sonho prejudicasse seu apreço à liberdade e, sobretudo, o empenho com que se dedicava ao exercício de sua profissão.
Ela foi ainda a precursora que abriu caminho para cantoras como Nara Leão e Elis Regina, usando o bom gosto na escolha do próprio repertório e se aproveitando do melhor que produziu para sua voz uma geração privilegiada de grandes compositores, tornando-os famosos e permitindo que pudessem depender financeiramente apenas de seu talento. Só que foi além de suas antecessoras e dessas colegas que a sucederam desenhando as próprias roupas e turbantes, além de inventar os calçados de salto plataforma, com os quais tentou, e conseguiu, disfarçar seu porte físico franzino, que poderia prejudicá-la na comparação com colegas com os quais atuava em palcos e telas.
Ídolo e execrada - Com a biografada morta já há meio século e soterrada por mitologias de diversos tipos, as mais notórias delas impressas ou registradas em celulóide, não deve ter sido fácil para o biógrafo exumar episódios da existência real de um ser humano que se destacou, não apenas pela competência com que exerceu seu ofício, mas também pela forma leve e graciosa com que conduziu sua postura particular perante a vida. Do texto primoroso com que o autor sempre brinda seus leitores ganha relevo o contraste entre a idolatria da primeira fase de sua carreira na indústria fonográfica e na radiofonia, atividades em estágio inicial no Brasil, e a demonização na imprensa carioca da estrela do cinema americano. Se a sambista era tratada com devoção, a atriz pagava sozinha pelos pecados de roteiristas simplistas e produtores gananciosos, que instrumentalizavam seu estilo e seu talento a serviço da política de boa vizinhança de Tio Sam.
Acima de tudo isso, contudo, como mostra o autor num texto que prima pela elegância, pela precisão e pela despretensão, pairava a protagonista, súdita inexorável da própria boa índole e de uma simpatia contagiante, que a fazia ente querido de todo carioca que visitasse a Califórnia nos anos 30 a 50, quando ela viveu lá, sem ter podido jamais voltar para viver e trabalhar na cidade à qual chegou ainda bebê e com a qual se identificou como poucos lá nascido se identificaram. A bela garota liberada que animava as noites do Cassino da Urca e chegou a ser a sexta maior contribuinte do Imposto de Renda no país mais rico do mundo foi, assim, resgatada por esse livro notável.
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