"POETICIDADES E OUTRAS FALAS"
RUBENS DA CUNHA


Reside em Joinville, SC. Autor de "Campo Avesso" e "Visitações do Humano". Acadêmico de Letras. Escreve semanalmente no Jornal A Notícia e coordena o Grupo de Poetas Zaragata. Na Web tem o e-book: "A busca entre o vazio", disponível para download,
na URL: <http://www.arcosonline.com/index.php?option=content&task=view&id=146&Itemid=>.
Blog "Casa de Paragens": <www.casadeparagens.blogspot.com>.

Coluna de 9/2
(próxima coluna: 9/3)

Três Homens – eu todos nenhum

Fraco. O amor me faz fraco, eu gritava. Manifesto de vento. Estrume. Eu era um homem que desacreditava falácias românticas, um homem que celibatou-se porque não suportaria sucumbir a um sentimento. Era um homem avesso, tenso, coberto de mesuras e mentiras. Enquanto outros casavam-se, traíam, retraíam, tinham filhos e ex-esposas, eu esquivo, eu lapide sobre qualquer possibilidade amorosa. Isto eu era. As artimanhas. Esqueci-me das artimanhas, das teias orvalhadas, dos atavismos sanguíneos da paixão. Em certo dia, recebi de volta um olhar, um canto de boca vermelho, um todo corpo feito de cama e palavra. Eu sou agora um pasto de madrugada e gozo. Um vasto adeus à fraqueza.

Cabelos altos. Olhos vincados. Chumbo. Um retrato entorta a parede depois do amor mal feito. Nem suor nem mentira compõem estas horas ralas. Tudo o que temos é este degenerar-se na entrega, este ficar até o pó. Já sou a pele esfalerada, os dentros puídos. Sei que você também sofre a mesma escolha: ficar é igual a resignar-se, persignar-se neste altar de indiferenças. O que fizemos? Vejo em seu sorriso-vaso: 'o passado pouco importa, futurize a pergunta', desobedeço em silêncio e traição. Faço o que agüento nesta rotina de espera. Seu sorriso-porta me despede, me desorganiza os papéis. O amor quefoiumdia corta-se na cozinha. Tem mais coragem e sangue do que nós. Furto alguma pêra sobre a mesa e saio pelo outro lado da rua. Sem honra e sem paladar.

Açougueiro, mato porcos. Enchi. Preciso de espaço. Amolo a faca no rebolo antigo. Enfio abaixo da minha costela esquerda. Atrapalho-me um pouco no corte circular. Nos porcos, esvaziar é mais fácil, estão pendurados, basta um corte reto, de alto a baixo e o vazio acontece. Eu estou em pé, meio curvado. Com calma, corto toda a barriga. Pelo buraco, retiro o estômago, intestinos, fígado, rins e demais quinquilharias. Puxo os pulmões e, com certa agressividade, o coração. Costuro a barriga de volta. Retorno bem mais leve ao trabalho.

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