JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator, que acaba de obter o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL. Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor e conheça a poesia do colunista, cujo CD agora tem opção de download. Site: http://www.neumanne.com

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NA GALÁXIA DA WIKIPEDIA

O primado da versão
Não se trata de uma coisa nossa, como o samba, a prontidão e a bossa no tempo de Noel Rosa. O fenômeno é global e nós aqui só adotamos e exacerbamos a moda. Damos nossa contribuição, disso não há dúvida. É, para dar o exemplo da ocasião, o caso do horário eleitoral gratuito. Atribui-se a uma raposa felpuda mineira, que pode ter sido Gustavo Capanema ou José Maria Alkmin (sem cê, mesmo), a verdade segundo a qual "não importa o fato, mas a versão". Como o teorema em questão se encerra em si mesmo, este é um caso em que não carece debater a autoria, pois prevalece a versão, de acordo com o interesse do interlocutor, certo? O horário eleitoral gratuito, uma bossa nossa no planeta globalizado pelo crime organizado, consagra o primado da versão.

Rabos de palha em confronto
Será o nobre parlamentar mensaleiro, sanguessuga ou as duas coisas? Nada disso: Sua Excelência é sempre um cidadão de ilibada conduta, como garantem os adjetivos com que enfeita seu currículo na propaganda eleitoral gratuita, pouco importando os fatos que o desabonem. Ocorre no rádio e na televisão, os veículos de informação e entretenimento de uma sociedade de pobres iletrados, o confronto entre rabos de palha: como quase todos os têm, a existência de um garante a invisibilidade do outro. E vice-versa. E quem não tiver e expor os demais? A lei simplesmente o proíbe. É isso aí: os autores das leis garantiram a si mesmos o direito inalienável de seus partidos os enaltecerem sem que os adversários ou algum analista isento abelhudo os execrem.


A ciência do embuste
Na galáxia da Wikipedia, a neodemocracia vigente não pressupõe mais o fim do direito de um no princípio do direito de outrem, mas impera a indiscriminada licença para tudo o que apetecer a qualquer um. De posse da farta remuneração propiciada pela condição de intérprete, bem anabolizada pelo cargo público exercido parcialmente, o cantor e compositor baiano se dá ao luxo de dispensar os recursos advindos da autoria. E reveste a renúncia de cunho democrático, apoiado na popularização da arte e no rebaixamento da cultura até o rés do chão, invertendo a tendência da recém-extinta era da Enciclopédia, que pretendia elevar o nível de conhecimento e informação das massas. Nesse ambiente é que prospera o marketing, a ciência da mentira e da embuste.


O novo bezerro de ouro
Nesta sociedade, em que cada um pode inventar um verbete sobre qualquer coisa na Wikipedia, o poder é exercido por aquele que for capaz de produzir as melhores (et pour cause as menos realistas) versões fictícias das próprias memórias. Mensaleiros se sacrificaram pelo partido em que militam, que, por sua vez, serve a uma entidade reverenciada, inexistente e desconhecida, Sua Excelência o Povão. Em nome deste novo bezerro de ouro, os descamisados de Perón e Collor, os excluídos da Teologia da Libertação, a verdade desaparece como fato e como conceito filosófico, substituída pela versão do interesse de cada um, restabelecendo-se, aí, o princípio bárbaro do "cada um por si e Deus contra todos". 


Que tal trocar o dístico da Bandeira para "me engana que eu gosto"?
Um dia, daqui a 100 anos, quando algum pesquisador se debruçar sobre nossa vida real hoje, poderá ensinar a seus alunos nas aulas de História que neste princípio de século 21 vivemos sob a égide da desconstrução. Estamos em plena idade da "des": a desinformação também impera nestes nossos tristes dias. Pois parece estar começando neste milênio o fim do conceito enciclopédico, que os franceses pré-revolucionários incutiram na civilização ocidental (e, daí, o colonialismo se encarregou de espalhar pelo resto do mundo) há mais de três séculos: a idéia de que o conhecimento deve ser organizado para ser transmitido está totalmente fora de moda.

O consultor deste escriba para vogas em geral, e as culturais em especial, é nosso ministro da Cultura, o canoro e enxundioso Gilberto Gil. Sua Excelência adotou, ao que parece em definitivo, a pregação da demolição da autoria. Aquele conceito, contemporâneo da Enciclopédia, diga-se de passagem, de que alguém pode viver do que o próprio talento produzir está sendo esmagado pelo princípio elementar segundo o qual qualquer obra do pensamento ou da criação estética deve ser submetida à coletivização. É o pogrom dos cérebros, o holocausto da arte e do engenho humanos! Neste panorama é que se enquadra a tal da Wikipedia, uma brincadeira de hackers que se tornou o símbolo da nova era: uma anti-enciclopédia da qual os verbetes resultam da criatividade e na maioria das vezes da idiossincrasia, nem sempre bem intencionada, de quem tiver acesso à rede mundial de computadores, vulgo internet.

Parece brincadeira, mas não é! Se vivemos sob o domínio do apócrifo, qual a lógica de pagar a alguém direitos só por haver escrito um poema, pintado um quadro (aliás, não há mais alguém que pinte quadros) ou composto uma sinfonia (ou ainda alguma algaravia destrambelhada)? Neste universo da "desautoria" (o termo não está dicionarizado, mas também os códigos da linguagem, entre estes as palavras e as regras gramaticais estão submetidos à nova desordem desta anarquia), nada mais é autorizado. A verdade é apenas uma referência histórica, assim como o sânscrito, a peste negra e, ao que parece, a decência na gestão republicana.

Não se trata de uma coisa nossa, assim como eram o samba, a prontidão e a bossa nos tempos do sambista da Vila. O fenômeno é mundial e nós aqui apenas adotamos e exacerbamos a moda. Pois damos nossa contribuição, disso não há dúvida. É, para dar o exemplo da ocasião, o caso do tal horário eleitoral gratuito. Atribui-se a uma raposa felpuda mineira, que pode ter sido Gustavo Capanema ou José Maria Alkmin (sem cê, mesmo), a verdade segundo a qual "não importa o fato, mas a versão". Como o teorema em questão se encerra em si mesmo, este é um caso em que não carece debater a autoria, pois prevalece a versão, de acordo com o interesse do interlocutor, certo? Então!

O horário eleitoral gratuito, uma bossa nossa no planeta globalizado pelo crime organizado e pela balela dos discurso político da exploração demagógica da exclusão social, consagra o primado da versão. O nobre parlamentar é mensaleiro, sanguessuga ou as duas coisas? Nada disso: Sua Excelência é sempre um cidadão de ilibada conduta, como garantem os adjetivos com que enfeita seu currículo, pouco importando quaisquer fatos que o desabonem. Ocorre no rádio e na televisão, os veículos de informação e entretenimento de uma sociedade de pobres iletrados, um confronto entre rabos de palha: como quase todos os têm, a existência de um garante a invisibilidade do outro. E vice-versa. E quem não tiver e resolver expor os demais? Hahaha! A lei simplesmente proíbe. É isso aí: os autores das leis garantiram a si mesmos o direito inalienável de seus partidos os enaltecerem sem que os adversários ou algum analista isento abelhudo os execrem. Na galáxia da Wikipedia, a democracia não pressupõe mais o fim do direito de um no início do direito do outro, mas a indiscriminada licença para tudo o que apetecer a qualquer um. De posse da farta remuneração propiciada pela condição de intérprete, bem anabolizada pelo cargo público exercido parcialmente, o cantor e compositor se dá ao luxo de dispensar os recursos advindos da autoria. E reveste a renúncia de cunho democrático, apoiado na popularização da arte e no rebaixamento da cultura até o rés do chão da popularização (invertendo a tendência da recém-falecida era da Enciclopédia, que pretendia elevar o nível de conhecimento e informação das massas). Nesse ambiente é que prospera o marketing, a ciência da mentira e da empulhação. Do embuste, para usar a definição precisa com que outro articulista desta página, Gaudêncio Torquato, definiu a propaganda eleitoral gratuita dos candidatos nos meios eletrônicos de comunicação de massa.

Na sociedade em que cada um pode inventar um verbete sobre qualquer coisa na Wikipedia, o poder é exercido por quem for mais capaz de produzir as melhores (et pour cause menos verazes) versões fictícias das próprias memórias. Mensaleiros se sacrificaram pelo partido em que militam, que, por sua vez, serve a uma entidade reverenciada, inexistente e desconhecida, Sua Excelência o Povão. Em nome do novo bezerro de ouro, os descamisados de Perón e Collor, os excluídos da Teologia da Libertação, a verdade desaparece como fato e como conceito filosófico, substituída pela versão do interesse de cada um, restabelecendo-se, aí, o princípio bárbaro do "cada um por si e Deus contra todos".

Na idade da "des" - desconstrução, desinformação, desautoria, desordem, desmoralização, desdém, deselitização - e sob o primado da versão, urge substituir o dístico da Bandeira Nacional na próxima legislatura. Sendo "ordem e progresso" mecanismos de dominação das elites, a proposta é trocá-lo por "me engana que eu gosto".

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