Coluna de 9/5
(próxima coluna: 9/6)
Breve reflexão a respeito do tempo em “Quincas Borba” de Machado de Assis
Machado de Assis disse: “o tempo é um rato roedor de coisas” e “um químico invisível, que dissolve todas as substâncias morais”. A julgar pelas frases, Machado considerava o tempo algo invencível, mas também vil, mesquinho, representado pelas imagens do “rato” e do “químico invisível”, que são aqueles que não aparecem, que ficam nos escuros, roendo, dissolvendo a vida.
No Romance “Quincas Borba” o tempo é impiedoso, sobretudo com os perdedores, aqueles que não conseguem entrar no jogo social e vão ficando à margem.
Das personagens coadjuvantes, uma das que mais sofreu a ação do tempo-rato foi D. Tonica, a mulher que tinha ficado para trás, que tinha perdido seu tempo de casar, e como por milagre o achou aos quarenta anos:
“... Em suma, dali a mês e meio, ou pelo menos, cinco semanas, estariam unidos pelos santos laços do matrimônio.
- Eu fico livre do trambolho, concluiu o major.
- Oh! Protestou Rubião.
A filha ria-se; estava acostumada às graças do pai, e tão disposta à alegria que nada a vexava; ainda mesmo que o pai se referisse aos seus quarenta anos passados não lhe daria grande golpe. Todas as noivas têm quinze anos. (...).”
Mas o tempo-químico não foi condescendente com D. Tonica, nem o narrador machadiano, que pela voz de outra personagem nos diz:
“Seis meses, oito meses passam depressa, reflexionou D. Fernanda. E eles vieram vindo, com o sucesso às costas, - a queda do ministério, a subida de outro em março, a volta do marido, a discussão dos ingênuos, a morte do noivo de D. Tonica, três dias antes de casar. D Tonica espremeu as últimas lágrimas, umas de amizade, outras de desesperança, e ficou com os olhos tão vermelhos, que pareciam doentes”.
E mais não se diz de Tonica, dissolvida pelo tempo, perdida para sempre na solteirice-viuvez. Nada mais restou a esta personagem, nem sequer um narrador que estivesse ao seu lado para expressar sua dor. A perda de Tonica para o tempo (a para a grande amante do tempo, a morte) foi narrada numa lista de coisas acontecidas à outra personagem. É o rato roendo a vida dos menores, dos perdedores, é a história relegando ao esquecimento quem não vence.
O mesmo acontece com o simplório Rubião. No romance percorremos sua ascensão e queda no mundo dos bem nascidos. Movido por uma paixão silenciosa, por uma parvoíce sem tamanho, Rubião vai sendo comido pelo tempo, à medida que enlouquece, empobrece, perde o traquejo social que quase nunca teve.
Na ida para o Rio de Janeiro Rubião “entre tanta gente carrancuda ou aborrecida, era o único plácido e satisfeito ” e diz a certa altura “...Estou cansado da província; quero gozar a vida. Pode até ser que vá à Europa... “ . Mas o tempo vai tecendo suas dissolvências, aniquilando esperanças e com a ajuda de uma série de fatores externos e internos, faz Rubião retornar à Barbacena como um mendigo esclerosado: “... foi andando rua abaixo, seguido sempre pelo cão, faminto e fiel, ambos tontos, debaixo do aguaceiro, sem destino, sem esperança de pouso ou de comida ...”. O tempo desterra os vencidos, exila-os para a morte solitária. O químico invisível não perdoa os fracos, envelhece-os antes e os mata, como fez a Rubião: “dois minutos de agonia, um trejeito horrível, e estava assinada a abdicação ”, a também ao cão Quincas Borba, que “ganiu infinitamente ” e “amanheceu morto na rua, três dias depois ”.
O tempo também dissolve as substâncias morais e éticas. Machado em seus romances costuma expor essa desagregação dos princípios. Em “Quincas Borba” não é diferente. Ao mesmo tempo em que Rubião perde-se, acompanhamos a ascensão de Sofia e Palha, de como eles acham o caminho para as classes superiores da sociedade em que viviam, de como são favorecidos pelo tempo. Ao contrário de Rubião, roído em sua essência, eles foram moldando-se em novos indivíduos; o tempo-químico foi aniquilando aquilo que eram, de onde vieram, o que representavam, o tempo deu a Palha e Sofia a aura de vencedores: “ Sofia inaugurou os seus salões de Botafogo, com um baile, que foi o mais célebre do tempo. Estava deslumbrante. ... Toda a gente admirava a gentileza daquela trintona fresca e robusta...” O tempo esculpiu uma nova Sofia, nem parecia a simples mulher numa estação de trem na cidade de Vassouras, acomodando “cestinhas e embrulhos de lembranças que traziam ”.
Para Machado, o tempo é dúbio, a alguns ele estraga, destrói; já outros são melhorados, mesmo que somente na aparência, mas no universo machadiano é a aparência que determina aquilo que as pessoas devem ser. Os que sabem disso e usam o tempo a seu favor saem tranqüilos e felizes. Externamente felizes. Os que não sabem, murcham até a loucura e não raro até a morte.
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