"POETICIDADES E OUTRAS FALAS"
RUBENS DA CUNHA


Reside em Joinville, SC. Autor de "Campo Avesso" e "Visitações do Humano". Acadêmico de Letras. Escreve semanalmente no Jornal A Notícia e coordena o Grupo de Poetas Zaragata. Na Web tem o e-book: "A busca entre o vazio", disponível para download,
na URL: <http://www.arcosonline.com/index.php?option=content&task=view&id=146&Itemid=>.
Blog "Casa de Paragens": <www.casadeparagens.blogspot.com>.

Coluna de 9/8
(próxima coluna: 9/9)

Ser o que se é

          “Eu gosto de ser mulher ” canta Maria Bethânia. Esse é o verso inicial de “O Lado quente do Ser” cujo autor da letra é o poeta Antônio Cícero. No Brasil temos uma quase tradição: homens compositores que assumem a voz feminina em primeira pessoa e expõem o universo pelo olhar da mulher. O caso mais célebre é de Chico Buarque. Suas mulheres são famosas, completas. Chico também compôs algumas letras que ultrapassam o universo heterossexual e adentram no complexo amor homossexual feminino.
           Nos anos oitenta, Gal Costa e Simone protagonizavam um intenso dueto cantando a música Bárbara.

Anna : Bárbara, Bárbara
Nunca é tarde, nunca é demais
Onde estou, onde estás
Meu amor, vem me buscar

Bárbara : O meu destino é caminhar assim
Desesperada e nua
Sabendo que no fim da noite serei tua

Anna : Deixa eu te proteger do mal, dos medos e da chuva
Acumulando de prazeres teu leito de viúva

As duas : Bárbara, Bárbara
Nunca é tarde, nunca é demais
Onde estou, onde estás
Meu amor vem me buscar

Anna : Vamos ceder enfim à tentação das nossas bocas cruas
E mergulhar no poço escuro de nós duas

Bárbara : Vamos viver agonizando uma paixão vadia
Maravilhosa e transbordante, feito uma hemorragia

As duas : Bárbara, Bárbara
Nunca é tarde, nunca é demais
Onde estou, onde estás
Meu amor vem me buscar

          Apesar de todas as mudanças, de todo os conceitos revistos, o amor dos iguais, aquele amor que Oscar Wilde no começo do século XX definiu como “o amor que não ousa dizer o nome ” ainda sofre as manipulações, humilhações da sociedade. Na primeira gravação de Bárbara, cantada pelo próprio Chico, algumas partes da música que demonstravam claramente o amor lésbico de Anna e Bárbara, foram encobertas por aplausos, numa daquelas artimanhas que os artistas faziam para escapar da censura.
           Esta artimanha me faz pensar em como andam hoje os artifícios utilizados pelas mulheres homossexuais para abafar seus sentires? Muitas se escondem em casamentos falsos, outras ficam sozinhas vida inteira e carregam a pecha de ‘tia' sobre as costas, outras até libertam seus desejos em vidas duplas, por baixo das máscaras. Estas mulheres existem e de forma nenhuma podemos condenar suas atitudes de esconderem o que são, pois o peso do mundo, aquilo que o próprio Chico Buarque colocou em outra canção de amor lésbico, a trágica e Lírica “Mar e Lua”: “... e foram ficando marcadas, ouvindo risadas, sentindo arrepios.. .” não é algo que possa ser agüentado por todas.
          Por outro lado surgem as mulheres que conseguem suplantar tudo e todos, que conseguem se impor ao mundo e se assumirem na exata medida do que são. A que preço? Desconheço. Penso que para muitas não haja palavra possível para definir tamanha coragem. São mulheres que conseguiram e conseguem a cada dia agregar ainda mais valor ao que é ser mulher, àquilo que Vanusa proferia na, infelizmente, esquecida “Mudança”:

“... Hoje eu vou mudar
por na balança a coragem
me entregar no que acredito
para ser o que sou sem medo ...”

          Eis o princípio básico de qualquer orgulho, inclusive o lésbico: ser o que se é sem medo. Difícil, impossível mesmo para algumas, pois o peso do mundo comprime muitas verdades e desejos. Porém, existem aquelas com conseguem, estas fortalecem outras, e se não conseguem mudanças radicais, pelo menos iluminam um pouco o caminho das pessoas que estão por perto.
           Para finalizar “Compasso ”, de uma das maiores artistas homossexuais do Brasil, Angela Rô Rô:

“É o que cruza o meu sangue quente
é o que faz o meu animal ser gente
é o meu compasso mais civilizado e controlado

Estou deixando o ar me respirar,
bebendo água para lubrificar,
mirando a mente em algo producente.
Meu alvo é a paz!

Vou carregar de tudo vida afora
Marcas de amor, de luto e espora.
Deixo alegria e dor ao ir embora.

Amo a vida a cada segundo
Pois pra viver eu transformei meu mundo.
Abro feliz o peito, é meu direito.”

          É o direito de todas as mulheres homossexuais ou não. É o direito de todas as pessoas, sem exceção.

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