"POETICIDADES E OUTRAS FALAS"
RUBENS DA CUNHA


Reside em Joinville, SC. Autor de "Campo Avesso" e "Visitações do Humano". Acadêmico de Letras. Escreve semanalmente no Jornal A Notícia e coordena o Grupo de Poetas Zaragata. Na Web tem o e-book: "A busca entre o vazio", disponível para download,
na URL: <http://www.arcosonline.com/index.php?option=content&task=view&id=146&Itemid=>.
Blog "Casa de Paragens": <www.casadeparagens.blogspot.com>.

Coluna de 9/10
(próxima coluna: 9/11)

Memórias Sentimentais de João Ribamar: a contribuição inestimável da ousadia

              Ao ler a obra de Oswald de Andrade, pode-se perceber que apesar da profanação dos códigos literários, lingüísticos, políticos e sociais vigentes, ele sempre propôs uma renovação concreta para a literatura e para a cultura de um modo geral. No manifesto da poesia Pau Brasil uma das idéias mais aplicadas em suas obras manifesta a vontade da renovação:
               Contra o gabinetismo, a prática culta da vida. Engenheiros em vez de jurisconsultos, perdidos como chineses na genealogia das idéias.
              A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos.
              Oswald assume uma vertente parodística, seu discurso propõe o humor, a ironia, a sátira social, tanto que o livro “Memórias sentimentais de João Miramar ” foi definido por Antonio Candido como sendo “uma tentativa seriíssima de estilo e narrativa, ao mesmo tempo em que é um primeiro esboço de sátira social”. Assim, Oswald profana a literatura vigente na sua época e a renova, fazendo aproximações entra a prosa e a poesia, até então nunca vistas; utilizando-se da linguagem cinematográfica, e da “contribuição milionária de todos os erros”.
              O livro “Memórias sentimentais de João Miramar ”, assim como toda a obra de Oswald, abre as caixas onde muitos insistem em colocar os gêneros literários. “ Memórias ...” pode, e não pode, ser lido como poema, crônica, conto, romance, relato biográfico, notícia de jornal, roteiro de cinema. O discurso carnavalesco de Oswald aproxima todas as possibilidades, miscigena tudo: “De William James e Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem. Antropofagia.”
              Fruto da vanguarda antropofágica, é uma obra que inaugura a modernidade na literatura brasileira, para o bem e para o mal. Ao olharmos todas as nossas rupturas literárias posteriores, percebemos que a raiz da maioria se encontra nas idéias oswaldianas.
              Livro com prosa em flashes , altamente poético, sucinto, cinematográfico, é uma espécie de degrau na obra de Oswald. Escrito simultaneamente com o manifesto “ Poesia Pau-Brasil ”, o livro se ampara fortemente nas idéias literárias deste manifesto, e juntos, embasarão o Manifesto Antropofágico, escrito quatro anos depois.
              O Manifesto Antropofágico propõe um olhar mais pleno, trata-se de cultura, de política, de história, de assumir nossa condição de “índios”. Memórias Sentimentais de João Miramar , em seu experimentalismo lingüístico expõe pela paródia, pela sátira social, pelo olhar cru e sem medo de seu narrador-personagem, nossa sociedade tacanha. Ambos, Manifesto Antropofágico e “ Memórias ...”, assim como toda a obra de Oswald, se utilizam das mesmas técnicas de criação tais como o hibridismo na linguagem, neologismos, sátira, paródia, concisão descritiva, para corroerem as estruturas da moral vigente. A força narrativa de Oswald é tanta, que seu manifesto necessita de muito poucas atualizações para se encaixar em nosso Brasil atual, bem como a sua obra ainda fere leitores preconceituosos e despreparados.
              A narrativa de “Memórias...” não é apenas uma sátira social, mas também uma luta contra os poderes imperiosos da religião. O personagem transita, quando criança, no mundo ritualístico da fé católica e ao expor sua desobediência interna, expõe a fraqueza destes rituais, já no primeiro capítulo do livro:

Jardim desencanto
O dever e procissões com pálios
E Cônegos
Lá fora
E um circo vago e sem mistérios

              A partir disso, passa a cumprir os rituais assumindo a hipocrisia dominante, e estabelecendo considerações profundamente irônicas: “no silêncio tiaque-taque da sala de jantar informei mamãe que não havia Deus porque Deus era a natureza. Nunca mais vi o Seu Carvalho que foi para o inferno”
               Quanto à visão europocêntrica, a crítica de Oswald é mais severa. O personagem cumpre seu papel de homem da alta classe. Viaja pela Europa, tanto que boa parte da narrativa é a exposição desta viagem; casa; arruma uma amante, “tapetei bungalow longínquo”; administra muito mal os negócios; declara falência. Mantém-se entediado por quase toda a narrativa; o personagem é um dândi sem maiores objetivos: “pelos sábados eu e o poeta Fíleas britanizávamos a semana em surtidas por caminhos pores de sol lá de Santana”.
              A vida desta classe girava em torno de valores europeus, apesar de sua verve, João Miramar, não escapa da sina, cumpre a risca o seu papel. O que o salva é a auto-ironia, concentrada a limites máximos no capítulo final do livro. “O meu livro lembrou-se Virgílio, apenas um pouco mais nervoso no estilo”. Assim, o personagem-narrrador, o escritor, o homem Oswald se retrata neste livro com linguagem delirante, em que , nem igreja, nem sociedade, ambas cheias de engessamentos, escapam à sua crítica feroz e atualíssima.


Referências
Andrade, Oswald. Memórias sentimentais de João Miramar. Editora Globo. São Paulo, 1990.
______________. Manifesto Antropófago. www.antropofagia.com.br
______________. Manifesto da Poesia Pau Brasil. www.antropofagia.com.br
Campos, Harold. Miramar na Mira. In: Memórias sentimentais de João Miramar. Editora Globo. São Paulo, 1990.


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