"POETICIDADES E OUTRAS FALAS"
RUBENS DA CUNHA


Reside em Joinville, SC. Autor de "Campo Avesso" e "Visitações do Humano". Acadêmico de Letras. Escreve semanalmente no Jornal A Notícia e coordena o Grupo de Poetas Zaragata. Na Web tem o e-book: "A busca entre o vazio", disponível para download,
na URL: <http://www.arcosonline.com/index.php?option=content&task=view&id=146&Itemid=>.
Blog "Casa de Paragens": <www.casadeparagens.blogspot.com>.

Coluna de 9/11
(próxima coluna: 9/12)

O Deus em Hilda Hilst

               Hilda Hilst foi uma das vozes mais marcantes da literatura brasileira produzida na última metade do século XX. Foram quase cinqüenta anos de produção ininterrupta. Uma obra que transitou entre a poesia, a prosa e o teatro, sendo que o teatro é uma ilha solitária e quase desconhecida incrustada no final dos anos 60. A força de sua obra está nos livros de poema e nas narrativas.
                Entre esses dois universos não há barreiras, já que a autora praticou muito o hibridismo de gêneros em seus livros. Os poemas normalmente longos, divididos em partes, possuem uma linha narrativa própria, em que é possível identificar uma voz, como se fosse um personagem. Na prosa, o fluxo de consciência, a linguagem amplamente inserida no poético, a utilização contínua de metáforas, aliterações, assonâncias, a inserção de poemas em muitos dos textos narrativos, faz com ela ganhe ares herméticos, destoantes. É possível afirmar que foi esta escrita híbrida que deu a Hilda um de seus principais rótulos: a de escritora difícil.
               Lendo e relendo a obra em prosa de Hilda, percebi que há nela alguns elementos essenciais que sustentam os textos: sexo, morte e Deus. Os personagens chafurdam (usando uma imagem tipicamente hilstiana) no sexo e na morte, para encontrar Deus. Todos levam sobre si a pecha de loucos. Muito se tem estudado sobre esses signos na obra de Hilda Hilst, sobretudo o sexo, das variações mais amenas encontradas nos livros iniciais a exacerbação pornográfica encontrada na trilogia “Cartas de um Sedutor”, “O Caderno Rosa de Lori Lamby” e “Contos d'escárnio - Textos grotescos”, como é o caso da dissertação de Deneval Siqueira de Azevedo Filho: Holocausto das fadas. A trilogia obscena e carmelo bufólico de Hilda Hilst.
               Em entrevista ao Caderno de literatura brasileira quando questiona sobre o que a sua obra, no fundo, procurava, Hilda de maneira sucinta e definitava responde: “Deus”.
                Eis a grande procura. A busca que norteou não apenas a ficção, mas a vida inteira de Hilda. O encontro com o divino, o sagrado. A presença contínua do “Sem nome”, um dos inúmeros codinomes dados a Deus por Hilda, impingindo aos personagens misérias e elevações.
               Em entrevista a autora afirmou:
               Eu gostava de ficar na capela do colégio. Eu queria me aproximar da idéia de um Deus que tenha sido o executor de tudo, desse mundo que é tão notavelmente paradoxal e cruel. E essa mania eu não tirei nunca da minha vida: quer dizer, de existir uma potencialidade qualquer que você nomeia de algum nome e eu o nomeio Deus de vários nomes: Cara Escura, Sorvete Almiscarado, Grande Obscuro, O Sem Nome, o Mudo Sempre, o Tríplice Acrobata. É uma vontade de estabelecer um intercâmbio com essa força muito grande, porque eu não acredito que as coisas acabem assim.
               Hilda foi prolífica na “vontade de estabelecer um intercâmbio”, para isso usou muito o sacrilégio, a obscenidade. Os personagens acreditam e temem a Deus, no entanto, buscam-No pela via sacrílega, seja humanizando Deus ao ponto de fazer sexo com Ele, visto no livro “Qadós”, seja procurando-O no mais profundo do ânus, visto em “Estar Sendo Ter Sido”
               Hilda não tem medo de usar corporalmente seus personagens na busca do sagrado. Na maioria das vezes um corpo resumido ao ânus e a pélvis. O caminho de busca por Deus se concentra nestas paragens da anatomia humana. Proferindo xingamentos contra o “Sem Nome” e ultrajando-se pela via da sexualidade, do medo da morte e da loucura sempre constante, esses homens e mulheres vão se agarrando ao que vêem e não vêem, num processo dolorido. Do outro lado, ou acima, está Deus em todas as nomenclaturas usadas para chamá-lo, desejá-lo, aborrecê-lo.
               Uma literatura feita de sacrilégios e obscenidades, tudo no intuito de fazer-se ouvir pelo Deus: “um cavalo de ferro colado à futilidade das alturas”.


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