JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida e O silêncio do delator, agraciado com o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL. Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor e conheça a poesia do colunista, cujo CD agora tem opção de download. Site: http://www.neumanne.com
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Relato de oração para uma santa que nem existe
— Prefácio do livro O herói sem rosto, de Luiz Augusto Crispim
Santa Cruz da Serra há por toda parte. Não apenas em castelhano nas bordas da planície amazônica na Bolívia real nem somente no território fictício de um pedaço qualquer do mapa do Nordeste que o romancista inventou. Santa Cruz da Serra é um lugar comum, ao alcance de seus olhos, facilmente oferecido ao contato de suas mãos. Um dia qualquer você freqüenta uma cantina italiana e fatalmente nela reconhecerá a matrona preparando a alquimia de suas folhas, cereais, tubérculos e temperos, entre a horta e a mesa ou o doce anarquista que trocou os sonhos revolucionários da mocidade de proveta pela modorrenta vida adulta, quase provecta, num interior qualquer das Américas, buscado não para ser feito, mas apenas para ser conhecido, vivido, dividido. Na mesa ao lado pode estar sentado Fausto, não o cientista dedicado ou o músico de gênio a vender a alma ao anjo decaído em troca do conhecimento da fórmula do elixir da juventude,da sapiência total das coisas do mundo e dos homens, minha nêga, ou das partituras da sinfonia mais genial de todas as eras e do cosmopolitismo das moneras. O Fausto mais comum é aquele sujeito que vende os sonhos ao demônio em forma de gente, que às vezes até veste Prada, capaz de lhe prometer fortunas e lhe entregar apenas as migalhas de um banquete. Se você tiver um pouco de paciência, vai ouvir por aqui confidências do pobre diabo e saberá como Lúcifer, com quem trocou suas ilusões por cinza morna, é também o sujeito que lhe furtou a esperança de felicidade comprando a mulher de sua vida por umas gotas de perfume e um par de algemas de ouro cravejadas de diamante, compradas por uma pechincha no ourives vizinho. Do lado de fora do bar de sua Santa Cruz da Serra o jornalista venal, que vendeu a decência por três níqueis e barganhou a independência por uma garrafa de conhaque vagabundo, dormita sem sequer sonhar que a mulher que o pariu mendiga moedas dos outros e dele apenas um olhar. Assim é a vida na sua Santa Cruz da Serra. Certamente haverá um alienista, que é também a consciência alienada a do lugar incerto e mal sabido. E o homem comum, este ser sem eira, nome, sobrenome, fortuna, destino nem coração, se torna herói do nada, quiçá do talvez, não por excesso de bagos, mas, sim, por falta de estômago. Na vida real é isso: o acaso não é apenas um jogo de dados na banca de Mallarmé, mas definitivamente o crupiê do bacará, o sujeito que corta o baralho no buraco ou o que dá as cartas na sueca. No dia-a-dia do vilarejo esmagado pelo sol ou da metrópole afundada na neve estão a seu dispor os ingressos para o espetáculo mais surpreendente do universo: a monótona e medíocre repetição da vida como ela é ou se passa por ser. Imagine só se um modesto professor de província, improvável freqüentador de uma livraria que nem sequer freqüentada chega a ser, e capaz de pôr termo a tudo tendo de responder processo pela morte dada como certa de uma miserável prostituta de beira de rio. Imagine se a senhora bem casada do todo poderoso do pedaço vai abrir mão do conforto de seus tafetás para hastear o estandarte rasgado e manchado de sangue dos rebeldes sem calças. O homem feliz em Santa Cruz da Serra usa camisa, sim. E com punhos de renda e abotoadura de ouro. Pode ser que esta felicidade seja efêmera, fugaz, fullgas, mas ela sempre vai emergir com o jeitão de uma luz furando o zinco da cortina de gases venenosos que escavam o ozônio além do horizonte. Santa Cruz da Serra, meu amigo, é seu mundo exterior e seu desabrigo à mão. Os caminhos que levam a este cenário de ruínas físicas e morais são feitos de desvios e sombras, desenhados pelos caprichos de um mago louco que não mora num castelo encantado, alcançado por um pé de feijão, mas no casarão à frente da praça principal. Luiz Crispim inventou a Santa Cruz da Serra dele neste romance. Mas ela só existe porque também se reflete na sua, que é outra e a mesma. E ela também se manifesta no seu espreguiçar lento, quando acorda de manhã bocejando, na cumplicidade silenciosa com que você suborna o guarda de trânsito que flagrou seu delito ou no ranger de dentes de seu bruxismo no sono de pesadelos na noite vaga e imprecisa que invade os trópicos e entorta a linha do equador. Tudo o que está neste livro, exposto de forma elegante, precisa e até sábia, é verdade. Ou, pelo menos, é verossímil, como os mestres da narrativa ensinam que uma boa deve ser. O casamento sem futuro do protagonista é a sombra da relação sem laços do antagonista. A perseguição implacável de um ao outro é tão inexorável quanto a sucessão das estações do ano e o rodízio de dias úteis e visitas externas com que o lugar imaginado pelo ficcionista constrói sua identidade. Santa Cruz da Serra é Gravatá, João Pessoa, São João do Cariri e pode ser Veneza ou Bagdá, Cabul ou a Dublin da algaravia de James Joyce. Esta novela é um novelo com fios que se bifurcam nas esquinas de um povoado fantasma e empoeirado, digno de ser encenado pelo maestro da imagem em movimento Sérgio Leone. A graça dele está na desgraça fria que serve de manto para seus personagens, marcados sem exceção pelo tédio, pela inércia e pela inutilidade. A maldição dele é a busca sequiosa pela bênção que o redima no mistério da louca da praça, no estoque de pinga do boteco mais infecto do bairro menos assistido e nos balões de oxigênio, imobilizados por seu peso e por sua incapacidade de impedir que o os fados e enfados de alguém ou de alguns sejam mudados. Esta novela de Crispim, com começo, meio e fim, refaz o trajeto de Caim perseguindo o manso Abel (e vice-versa), a história do gênero humano em pílulas que não se douram e capítulos incapituláveis. Pare de procurar fora de si mesmo a Santa Cruz da Serra que não consegue sair de você, embora você já tenha saído dali tanto tempo. Afinal, no fundo, no fundo, mais que um lugar, o cenário deste livro é sua alma, o destino manifesto de quem se perde da nobreza por algum motivo fútil e a danação implícita de quem se perde a meio caminho entre o talvez e o quem sabe, o nada e o coisa nenhuma. Há entre o cerro e a cruz mais mistérios do que pode conter o medo, como entre a manta e a muleta o mar se põe e o Sol se lava. Entre a cruz e o cerro há dor e delícia, cincerro e serrote. Pois este burgo inexistente de Santa Cruz da Serra não é estado de espírito, mas espírito de estado. Amém.
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