Coluna de 9/12
(próxima coluna: 9/2)
Nosso Pai – João Guimarães Rosa
João Guimarães Rosa é a terceira margem do rio na literatura brasileira. Sua obra não se fixa em margens terrenas: esquerda-direita, lado de cá-lado de lá. É uma obra que navega sobre as outras escritas interminavelmente, muitas vezes incompreensivelmente. Os leitores de Guimarães são próximos do filho-narrador de “Terceira Margem do Rio”, o mais antológico dos contos de Guimarães. Próximos, porque obcecados pela precisão lingüística, poética, psicológica desta obra imensa, não na quantidade de livros, mas na volumosa experiência de vida que nos dá. Somos capazes de abandonar todos os outros autores, ou pior, compará-los a Guimarães. Conseqüência disso: ficamos presos ao “nosso pai”, então é necessário fugir de Guimarães, como fez o filho de Terceira Margem do Rio: “arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado”. É um procedimento de salvação.
Mas a vida é vício. Vez ou outra, retornamos ao Rosa, para sabermos de suas infinitudes, “o rio-rio-rio, o rio – pondo perpétuo”, e estabelecermos um contato com seu mundo encantatório. Mundo que fica “para trás da Serra do Mim”, espaço do conto “A Menina de Lá”.
1. Primeiras Histórias: Portal de entrada
Primeiras Histórias é considerado o melhor livro para se iniciar na leitura de Guimarães Rosa. Uma espécie de preparatório para as obras em que ele radicalizou ainda mais a linguagem, ou para seu maior clássico: Grande Sertão: Veredas, uma obra que necessita fôlego e força para ser lida. Por isso, muitos aconselham se começar por estes contos curtos, denominados “estórias”, que de acordo com Paulo Ronai é um “neologismo que distingue a história como conto – isto é, relato de acontecimentos fictícios – da história como registro da vida de povos e países”. É possível que até seja um conselho útil, mas convém lembrar que iniciar a leitura de Guimarães Rosa em qualquer livro requer força e fôlego, além de uma armazenamento de sensibilidade para além do comum. Requisito essencial para ler o Seu Rosa.
O livro “Primeiras Histórias” é constituído por 21 contos curtos, demonstram a inventividade artística de João Guimarães Rosa, pois cada um dos contos possui características peculiares, tanto na estrutura formal, quanto na dimensão psicológica, filosófica e poética.
Os experimentos com a linguagem, a concatenação entre a fala analfabeta do interior de Minas Gerais com a alta erudição e a força poliglota de Guimarães, e uma vontade de ser conciso como nunca tinha sido, fez com que Guimarães produzisse um de seus livros mais emblemáticos.
1.1 A Menina de Lá – Guimarães e a infância.
A infância é um dos elementos cruciais para entender “Primeiras Histórias”. Vários personagens são crianças. O mundo infantil é retratado por Rosa como um lugar de descobertas, ao mesmo tempo em que as fronteiras do mundo adulto estão por todos os lados cercando, sufocando, criando barreiras. É possível comparar os personagens infantis encontrados nesse livro com o escritor, não Guimarães, mas qualquer um que carregue a condição de escritor: vivem exilados em mundos imagéticos sendo pressionados por forças externas, elementos coercitivos de toda ordem.
No conto “A menina de lá” a personagem principal é Nhinhinha que “nascera já muito miúda, cabeçudota e com olhos enormes”. Olhos que tudo vê e que transporta para a linguagem sua visão. Na fala de Nhinhinha e visão imagética não apenas das crianças em geral, mas do próprio Rosa, um observador nato. Assim temos: “tatu não vê a lua” “estrelinhas pia-pia ... tudo nascendo” “alturas de urubu não ir” “o passarinho desapareceu de cantar” “Eeu? Tou fazendo saudade?”. A fala infantil é transposta para o texto como elemento de percepção, de integração com o mundo. Nhinhinha não é uma criança padrão, possui poderes de conseguir as coisas pelo simples desejo de possuí-las. “Eu queria o sapo vir aqui” e logo “reto, aos pulinhos, o ser entrava na sala, para os pés de Nhinhinha”. “Eu queria uma pamonhinha de goiabada” e uma mulher veio vender a goiabada naqueles ermos. Essa era a vida de Nhinhinha, mas as fronteiras adultas logo se aperceberam do excelente material que tinham ao seu redor. A mãe adoeceu, pediram para Nhinhinha a cura. Ouviram apenas um “Deixa... Deixa...”, até que certo dia, por vontade própria, abraçou a mãe e a curou. O mesmo se deu com a chuva. A seca veio esturricando tudo, então “experimentaram pedir a Nhinhinha: que quisesse a chuva. – “Mas, não pode, ué...”. “Deixa... Deixa...”. Até que certo dia quis um arco-iris e a chuva veio.
Guimarães Rosa concede um poder a Nhinhinha que adulto nenhum consegue entender. Um poder sem vaidade, sem pretensões, apenas para conseguir as coisas mais “levianas e descuidosas”, aquilo que não possui valor material. Isso, num mundo movido pela matéria, é ofensa grave, é conceder demais a quem nada vale: uma criança. Num universo regido por adultos, planejado por adultos: “Pai e Mãe cochichavam, contentes: que quando ela crescesse e tomasse juízo, ia poder ajudar muito a eles, conforme a Providência decerto prazia que fosse”.
Só que Deus é criança também. Não atende a intenções pragmáticas. Nhinhinha morre. Morre porque desejou um “caixãozinho cor-de-rosa, com enfeites verdes brilhantes...”
No universo de Guimarães, lá no lugar chamado “Temor de Deus” a infância estabelece suas marcas, grita suas falas poéticas e realiza seus desejos. Os adultos, apesar de tudo, tem que curvar-se à magia, ao mistério insondável, que só resta aceitar, transportar o mistério para o terreno do milagre, pois tudo “havia de sair bem assim, do jeito, (...) porque era, tinha de ser” – pelo milagre, o de sua filhinha e glória, Santa Nhinhinha.”
1.2 Luas-de-Mel – A redescoberta do amor
De acordo com Martha Augusta Gonçalves o tema proposto em “Luas-de-mel” é recorrente na literatura mundial:
Neste momento, inicia-se a narrativa cujo tema é recorrente na literatura universal: amores impossíveis cuja concretização implica obstáculos a serem vencidos. Na literatura rosiana, o tema é recriado e adquire nuances que transformam uma história de amor em duas, culminando em duas luas de mel; a do casal novo que foge e é acolhido, a do casal mais maduro, que acolhe. Nos primeiros, a aurora de um novo amor que se constrói; no segundo, o entardecer de um amor maduro que renasce. São as paixões da bem-querença, centralizadas no amor, valor extremamente positivo, contrapondo-se aos valores da guerra que não há, mostrando a predominância de valores eufóricos no percurso gerativo do conto.
O amor em suas duas fases/faces pode ser o ponto central do conto, mas chama atenção outro ponto que possui muita força: a necessidade de ação que os personagens possuem. Ação nesse caso, é a preparação para uma possível guerra que se daria caso o pai resolvesse ‘pegar' a moça de volta. Todas as pessoas em volta do personagem-narrador se mobilizam para resguardar o casal fugitivo até o momento do casamento dos dois, feito por um padre também armado. O grande olhar sobre essa tensão criada vem da mulher do personagem-narrador: Sa-Maria Andreza: “aroeira de mato virgem não alisa”.
O mundo do sertão possui uma ética e honra próprias, alimentadas pelos conflitos, pelas lutas, por uma juventude guerreira, que já estava quase esquecida naqueles confins. Por isso, quando antevê a possibilidade de retornar aos tempos áureos, afinal esse homem se apresenta dizendo: “sou quase de paz, o quanto posso”. Trata-se de um homem realimentado pelo idéia do conflito, que mesmo não realizado, deu a ele a possibilidade de reviver a lua de mel com sua Sá Andreza. O amor ressurgido aqui acontece como conseqüência de uma saída da rotina, com a possibilidade da morte iminente a energia vital se concentra em amar como se fosse a última vez, como se fosse uma partida para a guerra.
É visível a decepção do personagem-narrador quando o conflito foi resolvido pela diplomacia. “As passageiras consolações: fazer-de-conta-de-amor, o que era o meu cestinho de carregar água. A gente, agora: sair das desilusões, o entrar na idade.”
A narrativa roseana faz com que a vida volte aos eixos monótonos de antes, apenas com mais uma história para contar, com um pouco mais de energia para seguir “aqui nesta fazenda Santa-Cruz-da-Onça”.
REFERÊNCIAS
GONÇALVES, Martha Augusta. “Luas-de-mel” – Nas malhas da sedução . In: Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários. Volume 7 (2006) – 55-60. ISSN 1678-2054. http://www.uel.br/cch/pos/letras/terraroxa
ROSA, João Guimarães. Primeiras Histórias . Ed. Nova Fronteira
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