1ª quinzena de novembro - Coluna 99
(Próxima coluna: 18/11)
Antevisão do paraíso
Um anjo brincava se equilibrando na ponta dos pés, sobre a torre mais alta de uma Igreja qualquer. Não, nada se ouvia, no lugar onde estava, que pudesse tirar sua concentração irresponsável: coisa de quem não sofre com esse dilema humano de vida e morte. A sobrevivência de um anjo está acima destes, e entre estes – quem sabe? Só um anjo poderia explicar.
Dentro da Igreja, o ensaio monótono: mamãe e outras carolas, tão terrenas, embevecidas com aquela cantilena, obra-prima de uma beata qualquer, tentando agradar ao Senhor Criador de todas as coisas, o qual se recusaria ouvir tamanho descalabro musical em seu louvor. E o Senhor Criador de todas as coisas haveria de ter bom gosto, por certo. Mas deve ter se equivocado na área musical, deixando, soltas pelo ar, notas musicais incompatíveis entre si. Como de boa intenção até o inferno anda lotado, o número de candidatos, na oportunidade, rendeu páginas e mais páginas de inscrições. Mamãe caprichou em floreios improvisados na ânsia de ser aceita e, talvez, entrar para os anais dos guias eclesiásticos como um novo talento que despontava para o sucesso das manhãs de domingo e das festas religiosas. Há cerca de hora e meia eu agüentava aquilo. Cheguei a ter enjôos estomacais, ameaças de diarréia, acessos incontroláveis de tosse, o que estava ocasionando a perda de concentração do coro. O pároco, que também devia estar com a Bíblia cheia daquele horror, convidou-me a passear pelos jardins abandonados em torno do monumento. Acompanhei-o. Logo me distraí, quando avistei o anjo brincando de forma tão solta e descontraída no ponto mais alto da construção quase secular. Tive inveja. Soltei-me das mãos que me guiavam e saí correndo. Galguei a distância que me separava de meu objetivo subindo de dois em dois degraus a enorme escadaria, alcançando rapidamente o topo. Então me vi frente a um problema difícil: restava-me o dilema humano entre vida e morte. Mas isso eu tirei de letra, ao lembrar-me do suplício daquela cantoria no andar inferior. A vontade de experimentar total liberdade, apreciar a vista privilegiada do topo do mundo, apreciar o som do silêncio, tudo isso, aliado ao ímpeto encantador de brincar com aquele ser tão curioso, levaram-me a uma rápida solução às minhas questões imediatas.
Desta forma, posso afirmar, em uma única frase, que os arpejos de mamãe me levaram ao suicídio. Com uma prévia visão do paraíso, antes mesmo de chegar.
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